*Por Glauber Lauria

“A fome como boa disciplina”  Ernest Hemingway

Este é o título de um dos capítulos de Paris é uma festa. Recordo-me de que quando o li, identifiquei-o com a experiência que tive ao ler A montanha mágica. Havia conhecido pessoalmente Wanderley Wasconcelos, pois jáhavia lido dois de seus livros. Cursava Letras/Português na UFMT, campus de Pontal do Araguaia e um dia ao ganhar carona da professora de Teoria Literária Célia Maria Domingues Rocha Reis, perguntei-lhe onde poderia encontrar o autor. Ela informou-me erroneamente que ele trabalhava na secretaria de cultura, fui procurá-lo e dei de cara com o músico Divino Arbués, que indicou-me trabalhava Wanderley na secretaria de comunicação. Petulante ao extremo bati à porta da sala procurando por ele, me pediram que entrasse, sentei-me em uma cadeira a sua frente e jovial ele interpelou-me: “diga, meu jovem rapaz”, no que respondi de pronto: “Nada, você escreve, eu também”, ele fingiu franzir o sobrolho, fez uma pausa como se me avaliasse, indagou de chofre: “O que você anda lendo?”, respondi incontinenti: “Rimbaud!” (até então eu apenas conhecia do autor francês Uma temporada no inferno e alguns poucos poemas esparsos, tinha encontrado na biblioteca da universidade uma edição da Francisco Alves com o livro anterior e Iluminuras, estava com o exemplar em mãos) Ele sorriu satisfeito, e me convidou a ir a cantina da prefeitura beber um chá, creio que ele tenha percebido que nossa “prosa” não ia caber dentro daquela salinha onde trabalhavam outras pessoas, infelizmente não dadas ao hábito da leitura.estante-estante-para-livros-03Estávamos no centro da cidade de Barra do Garças-MT, um sol de rachar catedral como dizia o velho Nelson, não o Gonçalves, o Rodrigues; seria algo entre uma e três da tarde, conversamos prazenteiramente sorvendo um chá de cidreira e sob promessa solene de devolução rápida, inconteste e sem danos, ele prometeu-me para o outro dia o empréstimo de sua xerox dos poemas de Maiakóvski na célebre tradução da editora Perspectiva. Poeta russo de quem eu só conhecia a frase sobre o Brasil e seu nome na letra de uma canção do Zeca, não o Pagodinho, mas o Balero. Devorei o livro em dois dias, vou devolvê-lo “fritando”, espantado, admirado, louco para conversar. Aí Wanderley convidou-me para almoçar em sua casa no final de semana, fui e, ao deparar-me com seu acervo e conhecimento, embasbaquei. Depois descobrimos que éramos ambos torixorinos traumatizados, apaixonados por livros, possíveis poetas. Nesse primeiro dia a toda hora pedia-lhe que fôssemos à sua biblioteca, perguntei-lhe se me emprestava algo e solícito como todo bom sertanejo, disse que sim e, reticente como todos eles, ao ver que eu queria vários volumes disse que apenas um. Decoravam as paredes um retrato de Borges na Biblioteca Nacional da Argentina e Hemingway sorrindo em plana pescaria. Repousavam nas estantes vários volumes do autor americano. Havia lido apenas O sol também se levanta e achado o romance uma rematada patifaria, Wanderley deu-me uma aula sobre esse autor de sua predileção, retirei Por quem os sinos dobram da prateleira e fiquei acarinhando o livro enquanto o ouvia dissertar, eu conhecia um disco do Raul, não o Gil, o Seixas, com o mesmo título, mas enquanto conversávamos e eu brincava com o Scoob (o único poodle punk que conheci, mas isso merece história à parte), saia do banco de madeira e ia a toda hora namorar os livros, foi quando avistei A montanha mágica, minha referência do livro, além de título de uma música da Legião Urbana era a indicação em O encontro marcado de que todo jovem deveria ler esse livro. Vai eu agora dar massagem em capa dura e perguntar e perguntar e ouvir e ouvir. Indeciso, e tendo já Hemingway me rachado a cara uma vez, optei, só tinha direito a um, em levar o Mann.Captura_de_tela_2016-01-11_as_12.36.22 Morava a essa época num quarto da pensão de Dona Vera, no centro de Barra do Garças, sessenta reais ao mês, livre de água e luz, banheiro coletivo (a quem interessar possa a pensão fica ao lado do supermercado Catarinense e Dona Vera era um velhinha escrota que de tão ruim tava ficando careca, observação que não me furtei a fazer-lhe). De um lado da parede do quarto exíguo, haviam uns trezentos livros, do lado oposto, uns trezentos discos, uma vitrola velha, um computador velho, quando abria-se a porta para respirar, o colchão tinha que ficar em pé, contra uma de minhas coleções, o que era uma grande ofensa à contemplação estética de meu parco acervo. Junte-se a isso a telha eternit que eu podia tocar com a mão (tenho pouco mais de um metro e sessenta de altura), o fundo do quarto dava para uma escola infantil particular o que tornava impossível conciliar o sono à hora e, depois do recreio. No dia em que me mudei para essa nababesca residência, tomei a liberdade de expropriar algumas mirradas folhas de rúcula para acompanhar meu franciscano tabule que consistia apenas em tomate e farinha de trigo para quibe, começa meu desentendimento com a concierge e finda meu flerte com os estisicados pés de rúcula. Acrescento outro detalhe: dentre meus prazeres estéticos, eu possuía uma roseira, era a Ana Cristina Cesar. Vivia belamente instalada em um pesadíssimo e cafonérrimo vaso de cimento caiado de branco em formato de taça, descascado, quebrado em parte da borda, ela o coroava como hera a uma ruína, de um rosashock forte, pesado, cor de batom drag para beijar túmulo de poeta sodomita em Paris (Torixoréu que me aguarde a vingança virá e será literária); pois os sensíveis habitantes dos outros também luxuosos quartos, tinham por bem ao sair para seus esplendorosos trabalhos, arrancar a pequena rosa a qual eu me dedicava e atirá-la como um trapo qualquer à minha porta, pois as elegantes que possivelmente pagavam para foder deveriam não se achar merecedoras do execrável gesto que é dedicar uma flor a alguém. Mas não sejamos cruéís com os pobres proletários, talvez reencenassem eles  em poética metalinguagem o suicídio de Ana. Era mesmo bem possível, pois aqueles seres desconheciam a linguagem verbal, estavam mais para a performance contemporânea.33787095-Bookcase-full-of-books-vector-illustration-cartoon--Stock-Photo Depois disso, mesmo morando em outras cidades, meus pesadelos se acentuaram e várias vezes acordei/acordo sufocado de impotência para gritar à cena da rosa arrancada; hoje durmo de luz acesa, não possuo jardins. Sei apenas que havia muita fome. Sei também que Wanderley Wasconcelos emprestou-me A montanha mágica e recordo-me de estar petrificado de luz ao lê-la, pois haviam outros seres a cultivar flores-livros, seres que vinham do mesmo buraco amaldiçoado que eu ou mesmo da Alemanha, mas estavam por aí, com um olhar carinhoso às flores. Wanderley emprestou-me depois, quando tive intimidade para lhe falar da fome, Paris é uma festa e também Por quem os sinos dobram e muitos, muitos outros livros. Acabei por dar a Ana para a maravilhosa Rose, esposa do Wanderley, ela por fim um dia foi devorada por formigas, seres mais dignos, apesar do que, em minha mitologia íntima ainda acho que o que a poeta metamorfoseada fez, foi emular o final de Cem anos de solidão. Eu? Fiz amigos para toda a vida, e sempre que por Barra do Garças passo, tenho bons livros para ler, lugar onde dormir e o que comer.

 

Glauber Lauria, nascido em 1982, publicou de forma independente o livro Jardim das Rosas em Caos, já participou de três antologias em diferentes estados brasileiros e possui poemas publicados nos seguintes periódicos Sina, Acre, Fagulha, Grifo, Expresso Araguaia e A Semana.

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