“O tempo fora esculpindo a geografia de seus carinhos, mas o território ia se despovoando, como aqueles países maduros da Europa, que os habitantes do Terceiro Mundo julgam ser um verdadeiro paraíso, mas cuja população diminui a cada década (Pensa-se que esse seja um sinal de desenvolvimento, mas talvez não passe de uma certeza de egoísmo, de necessidades narcísicas, de indiferença pela vida)” (BETTENCOURT, 2006, p.42).
A escrita de Betencourt é desprovida de arcaísmos e esnobismos acadêmicos que muitas vezes acometem a escrita de acadêmicos que partem para a ficção. O leitor é convidado para o baile, e como “partner” conduz e é conduzido, ao mesmo tempo, em uma alternância salutar ao conjunto da escrita/leitura. São dezessete contos que versam sobre vários temas, mas o que me chama a atenção e provoca intensa estupefação são os que tratam de elementos constitutivos da escrita de alguns escritores. Borges, Kafka, Machado de Assis, Proust e Edgar Allan Poe, por exemplo, atuam direta, ou indiretamente em minha função de leitor.
O antagonismo a que se projeta a secretária de Jorge Luis Borges propicia o mergulho na cegueira por outro viés. Seu acompanhamento do mestre é referido em detalhes que subvertem os verdadeiros fatos que são inerentes à vida do escritor. E a maneira como é colocada essa ficcionalidade verídica produz efeito entorpecedor em quem segura o livro em suas mãos.
O êxito do escritor tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura do ´mot juste`, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro dos sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado (CALVINO, 1990, p. 63).
Com Kafka, a relação se dá por meio de um pisão em uma barata, que desaparece. Não se vê o cadáver, nem restos do inseto colados no calçado da personagem. Mas com o passar do tempo um ser obscuro, feito sombra vai aparecendo no apartamento. E o diálogo silencioso com o espectro vai ganhando contornos inverossímeis até um final insólito que denuncia o envolvimento entre as partes. Impressionante como a solidão, se não cria fantasmas, propicia que eles se sintam à vontade para a convivência harmônica, ou, se preferir, que exerçam uma coexistência pacífica. Não há como deixar de intuir a presença de Clarice Lispector e Machado de Assis ao chegarmos ao final do conto “A cartomante”:
Ele se desvencilhou e saiu, apressado. Desceu a escada correndo, quase escorregou no lixo acumulado, continuou correndo pela galeria, procurando a luz da rua, seus barulhos, um ar livre daquela atmosfera. Na esquina, não percebeu o sinal vermelho. Nem ouviu o som que seu corpo fez ao ser atingido pela Kombi. Nem sequer percebeu que perdera um pé do sapato. A única coisa que notou foi o letreiro luminoso de um bingo, onde se destacava, piscando, um desenho de uma carta de baralho (BETENCOURT, 2005, p. 95).
Mas é em “Os três últimos dias de Marcel Proust” que, a meu ver, o estilo da escrita se aprimora ao extremo. Ao misturar passagens obtidas da história de vida do escritor, a narrativa se apropria de alguns personagens e os coloca a importunar a cabeça do escriba. É como se enxergássemos seus delírios à mesa, com a pena à mão enquanto desfilavam pelo aposento, para desespero da criada que o assiste. Só mesmo com o óbito finda a narrativa e o leitor é convidado a se ausentar do ambiente: “Os olhos do morto, semicerrados, pareciam observar a cena” (idem, p. 124).
Vejo toda uma construção simbólica de um mundo solitário, mediado por reflexões de caráter evolucionista (4%), de relacionamento pessoal (O divórcio) de abuso sexual e pedofilia (Segredos da carne), intolerância religiosa e racismo (Sessão espírita), dentre outros. Lúcia nos brinda com esse conjunto (que se amplia por outras temáticas) e se espaça por 174 páginas de puro prazer estético sem pedantismo, como frisei anteriormente.
A solidão a que me refiro e que surge sub-repticiamente ao emprego de inúmeras situações, torna-se explícita em “Sossega leão”, quando traz a figura de um morador de rua, como milhares que existem por aí, a pregar seu discurso pelos logradouros públicos, a quem não costumamos dar ouvidos. A paisagem do Rio de Janeiro, lócus privilegiado das narrativas, traz a figura do “mendigo pontual, que anunciava a passagem da chuva e discursava coisas que ninguém nunca parou para escutar. Era uma voz clamando no meio da multidão, e não tinha ouvintes. A cidade não prestava atenção nos seus profetas” (idem, p. 144).
Considerado o pai da Escrita Criativa nos Estados Unidos, por muitos escritores e teóricos, o autor da “Filosofia da Composição” também fez escola como ficcionista; talvez mesmo sendo o pai do romance policial moderno. “O homem da multidão” foi um vislumbre do que estava por vir e nos acomete doentiamente nos dias de hoje, em nome da busca por não sei mesmo o quê. Alan Poe nos assombra ainda nos dias de hoje; talvez também fosse um desses profetas incompreendidos em seu tempo.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.