Escutei as palavras de Matheus Guménin Barreto enquanto tomava o meu café quente. Do outro lado da tela, o escritor dividia comigo a trajetória para colocar no mundo seu mais novo livro “Mesmo que seja noite“. Dividíamos palavras, projetos, sonhos, desejos, saudades, e uma xícara de café preto. Ficamos nesse ritual durante dias, trocando e compartilhando literatura, poesia, afetos. Esse papo tão leve e potente se mesclou com nossas lembranças sobre aquilo que nos une. Fins de tardes no SESC Arsenal, peças de teatro, amizades, pessoas em comum, e a triste notícia da perda de Marília Beatriz, que cortou nossos corações. Naquele momento, o que dissemos um ao outro, como que fazendo promessas em seu nome, foi que temos uma certeza: é preciso continuar e levar a arte sempre para frente. É o que ela gostaria e é esse o nosso comprometimento para com a sua memória.

O terceiro livro é sua obra mais radical, uma terra devastada – imagem evocada em sua narrativa – em que o autor peregrina em busca do que se é, da descoberta do sexo de outro homem, de recortes da subjetividade oprimida pela crise política brasileira, e a presente ausência de deus. Em texto publicado pela Revista Cult, o doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), Caio Cesar Esteves de Souza, aponta para os caminhos traçados por Matheus: “O enunciador do livro, enquanto reflete sobre a linguagem, mas também sobre muitos aspectos da vida em nosso mundo, que felizmente é mortal, busca a poesia com as mãos. Não com as pontas dos dedos, ou com a alma, mas com as mãos inteiras – uma linguagem tátil, matéria que pode ser alcançada, tocada, sentida em todas as suas limitações e produzida pelo toque.”

Trazer poemas ao mundo não é tarefa solitária. Para essa empreitada, Matheus conta com o apoio da editora Corsário-Satã e cada exemplar faz diferença nessa etapa, pois 100% da publicação de “Mesmo que seja noite” será viabilizada com os recursos da pré-venda (aberta até 01/08). É possível adquirir o livro com frete grátis para todo o país, durante o mês de julho, através desse link.

o mapa do corpo sob as mãos
desenhando itinerários bruscos
mornos
contornando bocas que não existem, mas que existirão
pés que não andaram, mas andarão
sexos que não se apontaram
mas que se apontam, agudos, sob o toque
devagar
como o encontro
de um trópico último com um último meridiano.

os olhos nublados de algo que não se adivinha

o homem tem o homem nas mãos
e as mãos seguem seu cego itinerário provisório
apagado sempre pelo toque próximo e sombra e esquecimento –
apagado como a praia e o vento que a inaugura.

E é sobre literatura, poesia, poema, e arte que falamos nessa entrevista, enquanto nos deliciamos com palavras e cafés:

– O que te impele às palavras?

Boa pergunta. Eu sinceramente não sei. Às vezes me pego pensando nisso, sabe? Por que a escrita e não, sei lá, composição musical? Ou por que não arquitetura, natação, física? Acho que eu teria sido um físico feliz, que eu teria me encontrado nos números e nas leis da física. Mas isso pode ser só uma impressão de leigo, não é, de alguém que não entende o suficiente de física e que por isso fantasia. Pode ser.

Acho que o que “me impele às palavras”, como você diz na pergunta, é um desejo conflituoso, um querer-e-não-querer, um admirar-e-desprezar. A linguagem é o que eu conheço de mais fugidio, de mais escorregadio. A gente tenta, tenta, tenta, mas ela escapa, vai pra longe, desliza das mãos como um peixe. Talvez isso explique meu interesse. Como diz o grande autor cubano Lezama Lima, “sólo lo difícil es estimulante”. O desejo pela linguagem não deixa de ser um desejo masoquista.

Acho que eu busco algo ou alguém através da linguagem. Não sei o que, não sei quem. A psicanálise deve dar algumas respostas, mas não entendo de psicanálise. O que eu sei é que a escrita é uma busca. Talvez uma busca por sentidosentido em mim, nos outros, no que está ao redor, na desgraça, no amor. Mas o pulo do gato é: e se não houver sentido? A gente precisa dormir com essa. E escrever mais, buscar mais, talvez criar um sentido. Dizem que às vezes o caminho vale mais do que o fim. Prefiro pensar que sim (nos meus dias mais otimistas).

Sinceramente não sei se vale a pena essa história de escrever. A gente alcança tão pouco, não é? Eu pelo menos alcanço tão pouco. Parece que a linguagem é feita de insuficiência. Penso na insuficiência como material de que ela é feita, sabe? Sempre ‘quase’, sempre ‘um pouco menos’, sempre ‘quem sabe um dia’. O narrador de A hora da estrela diz “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo”. Acho que é por aí, apesar de eu querer escrever pelo resto da vida, até o meu último dia. Contradições. 

Ismael Nery – Autorretrato 1930

– Do primeiro ao terceiro, um salto. O mais ousado, radical, a literatura mais madura, afiada. Qual foi o percurso para chegar até “Mesmo que seja noite”?

Acho que foi um percurso de opostos. Tenho um problema com o meio-termo. Talvez algum dia eu resolva isso. Espero que resolva. Porque por enquanto eu sigo um caminho até ‘secar’ aquele caminho, e aí procuro outro (falei ali em cima que linguagem pra mim é busca, não é?). Mas isso tudo pode ser só minha impressão bastante duvidosa.

O A máquina de carregar nadas (Editora 7Letras, 2017) parece ser um livro solar, cerebral – o Mesmo que seja noite (Editora Corsário-Satã, 2020) parece ser noturno, tátil. A máquina de carregar nadas geométrico, Mesmo que seja noite musical (mas de uma música estranha, atonal quase). No A máquina de carregar nadas a linguagem é ainda heroína, apesar de tudo, mas no Mesmo que seja noite ela já é suspeita. Talvez algum dia seja vilã, mas por enquanto é só suspeita.

O meu outro livro, Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Editora Carlini & Caniato, 2018), foi escrito depois dessa briga entre A máquina de carregar nadas e Mesmo que seja noite, apesar de já ter sido publicado em 2018. O problema é que ele não é síntese dos outros dois – acho que essa síntese infelizmente não existe. Vejo Poemas em torno do chão & Primeiros poemas simplesmente como um momento seguinte, uma busca seguinte. A tensão entre A máquina de carregar nadas e Mesmo que seja noite fica lá sem resolução.

mãos que levantaram-se e caíram
nos afazeres
e no fazer do tempo
que ele é por elas feito e elas por ele
engolidas

Enfim, talvez dê pra dizer que o Mesmo que seja noite é o mais radical porque nele o elemento central da escrita – a própria escrita – vira alvo de suspeita. Então é um livro que se constrói de um jeito torto, desconfiado, sem muita paz. Apesar disso (ou por isso), é o livro em que aparecem de forma mais incisiva a política brasileira recente (mesmo quando não é citada diretamente), a sensação de exílio do sujeito gay numa sociedade heteronormativa, a ‘presente ausência’ de deus, a experiência da perda.

De qualquer forma, se eu respondesse à sua pergunta amanhã, minha resposta provavelmente já seria bem diferente da que eu dei agora. Acho que já passei da fase de ter muitas certezas, as ‘verdades’ ficam todas meio suspensas (e suspeitas). 

– Desde a sua primeira publicação, há grande expectativa sobre o seu trabalho. Como percebe essa responsabilidade que incumbem à literatura? Você a sente? É inerente ou indiferente?

Kazimir Malevich – Menino com uma mochila 1915

Sinceramente eu não sei se existe alguma expectativa dos outros sobre meu trabalho, às vezes me sinto falando meio que sozinho, pras paredes, mas existe com certeza uma expectativa minha sobre ele. E isso é uma droga. Queria poder relaxar um pouco e me cobrar menos.

Quanto a essa “responsabilidade que incumbem à literatura”, acho que ela deveria ser a responsabilidade de todo sujeito, não só do artista. Não entendo o artista como alguém que vê mais longe, vê melhor, salva os outros ou ensina aos outros. Acho uma balela aquela história de que “o artista é a antena da raça”, que me perdoe o Pound. Ninguém é antena de nada, pelo menos não deveria ser. Eu não quero ser guia de ninguém, quero andar junto. Acho que cabe a qualquer pessoa – e, assim, também aos que se dizem artistas – estar atenta àquilo que acontece ao seu redor, dentro de si, dentro dos outros; atenta às estruturas sociais que dificultam a vida de alguns e facilitam a de outros; atenta ao absurdo da miséria e ao absurdo da suntuosidade. 

– A construção das imagens poéticas em “Mesmo que seja noite” nos remete a cenas como o fazer do tempo, a violência de dizer palavras de amor, e mãos que seguem cegos itinerários. Você vê a poesia? A poesia é tato?

Acho que isso depende um pouco da época. Em alguns períodos eu penso o poema, em outros vejo, em outros ouço, em outros toco. Isso vai ficando registrado quase que sem querer – percebo muitas diferenças quando releio poemas meus desse ano, do fim do ano passado, do início do ano passado etc. A sequência de livros vai se tornando um tipo de cartografia ou de itinerário da minha busca – e acho que isso vale pra qualquer escritor. É um tipo de biografia involuntária, mesmo em poetas tão avessos aos derramamentos pessoais conscientes (como o Cabral, talvez). É possível que isso valha em alguma medida também pra quem não escreve: imagina o quanto cada um entenderia de si mesmo se pudesse relembrar com exatidão e em ordem cronológica todas as músicas que ouviu ao longo da vida, todos os filmes aos quais assistiu, todos os namoros e namoricos que teve, todos os xingamentos que já falou (e pra quem). A pessoa que escreve acaba tendo uma ajuda extra nesse processo, já que todos os poemas que publicou ficam lá, registrados nos livros. Mesmo os poemas que ela nem sabe mais que escreveu, nem se lembra. Acho que existe alguma beleza nessa cartografia involuntária.

Enfim, voltando à sua pergunta, hoje especificamente eu toco e temo o poema. 

– Como você se relaciona com a poesia? E com o poema?

A relação com o poema é uma relação conturbada, cheia de ódio e de amor – mas é alguma relação, pelo menos. E duradoura.

Já a poesia é muito abstrata, com ela eu não me relaciono, ela deve existir em algum lugar, mas deve ser longe e o ônibus não chega. Prefiro o palpável do poema ao abstrato da poesia. 

Mark Rothko – Sem título 1969

– Escrever: ofício? Dever? Doação? Libertação? Por que insistir na arte?

Pois é, boa pergunta. Acho que quando eu souber essa resposta eu não vou precisar mais escrever. Podemos combinar uma nova entrevista pra daqui 30 anos, o que você acha? Eu topo. Talvez eu tenha alguma resposta definitiva até lá – mas tomara que não, assim continuo a escrever e a buscar.

SERVIÇO

Título: Mesmo que seja noite

Autor: Matheus Guménin Barreto

Editora: Corsário-Satã

Número de páginas: 56

Ano: 2020

Formato: 12×18 cm

ISBN: 978-65-86209-02-0

Preço: R$ 36,90

Compartilhe!
Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here