Por Lucas Rodrigues*

– Olá, seja bem vindo ao Food Good do Shopping Barra Azul.

– Oi, eu quero… deixa eu ver… esse de peito de frango com arroz, feijão e batata.

– Qual bebida?

– Não, só o prato mesmo. Resolvi cortar o refrigerante, faz mal, aumenta as chances de câncer e agora eu to numa fase mais fitness.

– Tudo bem, entendo. É que esse prato está na promoção do dia, e o refrigerante de 500 ml vem grátis.

– OPAAA, QUERO. Não, espera (respira fundo). Éeee, só o prato mesmo.

Foi difícil para o contabilista Élcio Guimarães resistir ao seu instinto. A família também não ajudava. Refri no almoço, na janta, nas festas de família, no churrasco aos domingos. Ele já estava firme há mais de duas semanas, apesar dos tremiliques que sentia em diversas oportunidades ao longo do dia. Queria porque queria se livrar dos sintomas daquela vida de alimentação desregrada e sedentarismo. Mal conseguia subir uma escada sem ficar ofegante.

Quem lhe ajudava era a nutricionista Suzana Vandini, nacionalmente famosa pelo programa “Vigilância do Corpo”, em um canal da TV paga. Ainda assim, cada vez que sentia o cheiro da bebida adocicada, seu organismo parecia ter vontade própria e queria dominar o cérebro, como se fosse uma marionete anarquista se revoltando contra seu titereiro.

Dessa vez não. Após receber a bandeja com o prato – preparado em menos de cinco minutos – e jogar o comprovante na lixeira ao lado, Élcio largou o recipiente em uma das dezenas de mesas vazias do shopping e se dirigiu rapidamente até o “90’s Juice”, que vendia uma ampla variedade de sucos naturais apelidados com a temática do restaurante.

– Quero esse de cenoura, laranja, acerola e morango.

– O “Carla Perez no Egito”?

– Aham, respondeu Élcio, que não pediu o suco pelo nome por motivos de vergonha alheia.

– Sinto muito, eu vi aqui que a acerola está em falta. Mas temos o “Gemido do Leandro do KLB”, que é de cenoura, laranja e kiwi.

– Ah, mas não gosto de kiwi.

– Então eu posso misturar o “Carrinho de mão padá-padabadabá”, de cenoura e laranja, com o “Walter Mercado na Banheira do Gugu – O Episódio Perdido”, de morango com creme.

– Tudo bem.

Minimamente decepcionado em não poder usufruir o refresco do específico sabor desejado, Élcio pegou seu suco e retornou para a mesa, com uma estranha sensação de estar sendo observado. Mal sabia que instantes depois a sutil decepção evoluiria para uma crise de raiva sem precedentes.

– Desculpe senhor, com licença. Acho que houve um engano. Eu estou nessa mesa e esse prato é meu, disse Élcio ao homem que misteriosamente estava sentado no lugar onde deixou a comida e, pior, a comendo como se dele fosse.

– Não, de forma alguma. Acabei de comprar essa refeição. Você é quem está enganado.

– Nananinanão, quer dizer que você comprou uma comida igual a minha, sem o refrigerante, e também está sentado na mesma mesa que eu deixei meu prato? Não é muita coincidência?

– Sua comida? Olha, até agora estava achando que era conversa de doido, mas se continuar a me importunar terei que chamar o segurança!

– O quê? O senhor pega meu lugar, rouba minha comida e ainda tem a audácia de ameaçar chamar o segurança pra mim?, esbravejou o contabilista, batendo as mãos sobre a mesa.

– Saia já daqui! Segurança, esse homem está me ameaçando!!

Dois seguranças ao lado do parquinho infantil abordaram a dupla. O homem que roubou o lugar de Élcio sustentou a versão e, além disso, mostrou o comprovante de que comprou o prato até então tranquilamente degustado. Já Élcio, que como de costume jogou o papelzinho fora, ficou desacreditado perante os agentes de segurança.

Em choque, o contabilista não conseguia argumentar ou formular uma frase, tamanha a perplexidade do que estava a vivenciar. Chegou a questionar a si mesmo se realmente havia sentado ali e comprado o almoço. Começou a olhar para os lados e viu dezenas de transeuntes passando com olhares desconfiados e outras dezenas aglomerados ao redor, curiosos pelo desfecho do imbróglio.

Descontrolado, confuso e frustrado, Élcio partiu para cima do impostor, acertando-lhe um murro no nariz, e teve que ser apartado pelos agentes, que imediatamente acionaram uma guarnição da Polícia Militar. O contabilista foi algemado no camburão e ficou sentado em uma cadeira bastante deteriorada na delegacia enquanto aguardava um defensor público, uma vez que não tinha advogado constituído.

– Estou com sede, reclamou ao delegado.

– Pois é, mas estamos sem água aqui de novo, sinto muito. Toda semana é isso. Tenho o resto dessa Coca-Cola aqui, se quiser…

– Eeeer, não querendo ser ingrato, mas não tem um suco não?

– Era só o que me faltava. Frescura do caralho. É isso ou nada.

Um carro estaciona em frente à delegacia.

– Acho que é o seu defensor. Vou lá fora ver. Quem sabe ele traz o suco da madame, debochou.

O delegado sai. Com passo estranho e bigode desajeitado, o defensor público entra na sala com um copo de plástico na mão.

– Trouxe o seu suco e mais uma coisinha.

– Que coisinha?

– Um cheque de cem mil reais!!! Você caiu na pegadinha da “Vigilância do Corpo”, festejou Suzana Vandini, retirando aos poucos seu disfarce de defensor, sendo ovacionada pela equipe escondida no ambiente, que o seguia desde o shopping.

– Élcio Guimarães, você é um vencedor. Enfrentou a tentação, as adversidades, a frustração e todos os obstáculos que você aí de casa encara todo dia. Disse não ao câncer. Disse não aos aromatizantes. Disse não a toda essa porcaria que deteriora o corpo. Se o Élcio conseguiu, você também consegue. Vamos para o intervalo e já já falaremos com o nosso campeão.

Mesmo constrangido e sem saber o que dizer, o contabilista pegou o prêmio, fingiu gratidão e emendou um discurso de foco e perseverança, ao mesmo tempo em que rezava mentalmente para que a equipe não percebesse que o resto de Coca-Cola deixado pelo ator-delegado na sala já estava circulando em suas células.

*Lucas Rodrigues é jornalista, ator enferrujado, ama espetacularizar o cotidiano

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