Por Thereza Helena*
Quando saio de casa para assistir um espetáculo, já no percurso fico pensando na peça que vou ver, nas pessoas que vou encontrar, se será dessas de sentar no chão ou na cadeira, e, bem sinceramente, nos motores que naquele dia me fizeram trocar a Netflix pelo teatro. É como se a experiência de ir ao teatro já começasse antes mesmo do espetáculo.
Tratando-se do Festival Velha Joana, a experiência começa logo na saída de Cuiabá, e pelos 200 quilômetros percorridos até Primavera do Leste seguem comigo na estrada um misto de expectativa, em que me pego tentando antever os trabalhos que poderei assistir, e satisfação, por poder prestigiar o sucesso dessa ação importantíssima pelo meu segundo ano consecutivo.
Nesta 12a edição, numa programação com mais de 62 produções vindas tanto de Mato Grosso quanto de outros estados brasileiros, chamo atenção para o espetáculo “Alice”, do grupo Faces Jovem, segunda geração do Teatro Faces (Primavera do Leste-MT). Foi a terceira vez que vi Alice e confesso que, não fossem as outras duas, talvez eu não me lançasse na tentativa de elaborar em palavras parte dos afetos disparados por esse trabalho que julgo ser mais do que nunca urgente.
Como nas outras duas vezes, me emocionei muito com a história de Fernando e seus enfrentamentos diários pelo desejo de poder ser quem ele é. No espetáculo, o estudante de ensino médio é reprimido por seus colegas e professores justamente no ambiente em que deveria poder se sentir à vontade e seguro: a escola.
Na montagem, atrizes e atores compartilham não só a faixa etária das personagens que interpretam, mas também alguns conflitos semelhantes. Nesse aspecto, a dramaturgia desenvolve um papel fundamental ao considerar os relatos de experiências vividas pelo elenco e colocar não só o tema em cena, mas a forma de abordá-lo. Com isso, ao mesmo tempo em que corrobora a legitimidade do trabalho, favorece condições para que jovens falem com jovens e como jovens sobre as questões mais sensíveis que os afligem. Tudo isso com autenticidade e livre de maneirismos.
Embora a linguagem jovem chame a atenção para o que é dito em cena, em “Alice” parecem operar, além dessa, camadas dramatúrgicas que extrapolam a composição do texto. Pois nesses casos em que material e obra se confundem, a relação entre arte e vida se estreita, de modo que junto com os jovens artistas e seus hormônios parecem estar nossos corpos também em ebulição.
São corpos pulsantes, vibráteis. Corpos que se colocam em cena com a emergência das forças que falam neles. É vibração pura. Pulso junto e não sou a única. A participação efusiva da plateia que grita, torce e ri junto com a cena não me deixa mentir. A cada fala, extraídas, muitas vezes, de um cotidiano no qual a opressão insiste em soar familiar, vazam narrativas de enfrentamentos que abrem espaço pelas suas bocas, atravessam a cena e desaguam nos meus olhos. Incapaz de me conter, derramo também. Deixo minha emoção se encontrar com a emoção de toda a plateia porque tanta emoção assim, junta, pode arrebentar as paredes do teatro e inundar a cidade inteira.
Do lado de fora da sala, um número de pessoas igual ao da lotação aguardava o fim da apresentação. Mesmo sabendo que não entraria para assistir, o grupo esperava para cumprimentar os atores ao final da peça. Mais que o desejo de estar próximo aos artistas, aquele encontro parecia um gesto de cumplicidade de quem sabe que findo o show, o ciclo só se fecha e renova depois que os atores e atrizes, antes em cena, retomam seus papéis de amigos, amigas, filhas, filhos, colegas de escola, e no abraço dos seus, se enchem de forças para continuar nesse exercício laborioso de produzir afetos que a arte favorece. Uma prática do compromisso real: ninguém vai soltar a mão de ninguém.
Embora os afetos disparados pela experiência de assistir Alice tragam à tona uma gama de sensações, aspectos ligados às opções artísticas adotadas pelo grupo também me saltam aos olhos na montagem.
Em “Alice”, a encenação desvia daquelas escolhas estéticas que esbarram numa espécie de ideia do quanto mais difícil de entender, melhor. Com essa sagacidade, alcança não o só público alvo da temática, mas todo o público. Digo sagacidade, porque como artista sei que uma das grandes dificuldades é encontrar estratégias simples que potencializem em vez de resumir o discurso. Nesse sentido, tanto a proposta cenográfica quanto o figurino convergem para essa direção e, juntas, ambientam o espectador numa escola fictícia.
O cenário composto por algumas portas de madeira suscita múltiplas leituras. Ora funciona para dar a ver salas de aula pelas quais as personagens entram e saem, ora se reorganiza de modo que é possível ver um banheiro no qual a personagem se esconde. Num outro momento, funciona para delimitar várias casas diferentes de onde os vizinhos bisbilhotam a vida alheia. Dessas múltiplas configurações, a que mais me comove é uma na qual, por meio da materialização de uma preconceituosa expressão popular, o cenário de transforma na porta pela qual Fernando “sai do armário”.
O figurino também aparentemente simples, composto por saia azul marinho designada para as meninas e shorts na mesma cor para os meninos, conta com camisetas brancas nas quais se pode ler: “Colégio Ivone de Sá”- CIS. Estampar a sigla CIS no uniforme dos alunos personagens, certamente é uma referência ao termo CISgênero, crítica certeira ao preconceito muitas vezes institucionalizado sofrido por pessoas que não se identificam com o gênero designado a elas em seu nascimento.
Ainda no sentido de investir nas possibilidades da simplicidade, a encenação reitera o caráter narrativo da montagem lançando mão de um artifício muito utilizado na tragédia grega: o coro. Nessa formatação, os atores comentam com uma voz coletiva a ação dramática em questão. Na direção de Wanderson Lana, essa escolha também se reflete na movimentação cênica, cuidadosamente desenhada, cujas características e variações rítmicas dialogam com o padrão de movimentos comumente feitos por alunos na escola, como sentar e levantar juntos quando o professor chega na sala.
Finalmente, a trilha sonora é outro elemento digno de nota. Composta por “Não Recomendado”, “Bixa Preta”, “Um Beijo”, “Jaqueta Amarela” de Caio Prado, MC Lin da Quebrada, MC Xuxu e As Bahias e a Cozinha mineira, respectivamente, são canções que muito mais do que compartilhar com o público o universo sonoro da personagem Alice, apresentam uma perspectiva da produção musical contemporânea protagonizada por artistas que fogem ao padrão heteronormativo, colaborando para a produção de sentido dentro e fora da cena, num exercício de representatividade artística.
Texto escrito para o Parágrafo Cerrado a partir da programação do XII Festival Velha Joana.
Thereza Helena é atriz, diretora e colaboradora do Parágrafo Cerrado.