Com a companhia de Alabama Shakes e Y’Akoto como trilha sonora no fone de ouvido percorri as ruas de Montevideo por cerca de uma hora até chegar ao meu destino, o endereço Calle Durazno 1784. O Museo del Cannabis Montevideo (MCM) abriu suas portas em dezembro e recebe visitantes de todo o mundo, interessados em conhecer a história do primeiro país a legalizar a maconha.
O museu abriga muito mais do que a história da legalização no Uruguay, é um acervo com a história da maconha e do seu descobrimento, das suas múltiplas possibilidades. Até instrumentos musicais feitos da planta estão expostos ali. Seus poderes medicinais, o uso pela indústria têxtil, cosméticos a base da erva, informações históricas e científicas, materiais para construção (tem tijolo feito da cannabis) contrastam com as propagandas contra a maconha disseminadas nos Estados Unidos na década de 50/60.
Uma linha do tempo conta a trajetória política da legalização. O movimento ganhou força com a prisão da ativista e escritora argentina Alicia Castilla por cultivar a planta em seu jardim em 2012. Assim o debate nacional sobre a regulamentação do cultivo e consumo se consolidaram em políticas públicas. O guia do museu me mostrou um manifesto de 2010 sobre a legalização que convocava para uma marcha e contou sobre a conscientização da sociedade.
Uma planta paradoxal. Como é possível que mesmo com todas essas propriedades, a maconha continue a ser marginalizada? Seus potenciais não são explorados e não nos perguntamos por quê? Por que esta planta é criminalizada? Qual é o crime que uma planta pode cometer? Ela nos fornece tanto: medicamentos, roupas, alimento, casas. O que tem de tão errado nisso afinal? Por que não nos perguntamos a quem esta criminalização beneficia? Por que não nos perguntamos sobre o fracasso da guerra contra as drogas em todo o mundo? Muitos países começam a enxergar com outros olhos por que é uma questão de saúde pública. De nada vai adiantar criminalizar o usuário enquanto o narcotráfico se fortalece com a repressão às drogas. Continuaremos a produzir e perpetuar violência enquanto não pudermos desmistificar esse imaginário. Desconstruir essas ideias pré-concebidas. Desnudar a nossa humanidade. Enfim, eu falei mais aqui neste texto sobre a experiência do Uruguay com a legalização. E sobre a falência do sistema carcerário brasileiro e do fracasso da guerra às drogas aqui.
Cannabis Sativa
A humanidade tem usado a planta da cannabis por pelo menos 10 mil anos. Muitas civilizações aproveitaram a sua versatilidade. Da indústria têxtil à medicina, a cannabis é utilizada para fazer papel, comida, corda, velas, óleos e materiais de construção.
Essa planta tão útil, no entanto, foi proibida e seu cultivo reprimido com a “desculpa” dos seus efeitos psicoativos.
Existem três subespécies da cannabis: Cannabis sativa sativa, Cannabis sativa índica e Cannabis sativa ruderalis. Nem todas as espécies são psicoativas. A psicoatividade se dá pela presença do Delta-9-tetrahidrocannabinol (THC). As suas variedades não psicoativas são denominadas cânhamo e são utilizadas para alimentos, têxtil e outros fins industriais.
A cannabis é uma das poucas plantas anuais e dioicas, gostam de sol, água e que a terra tenha uma boa drenagem. Sua versatilidade é marcante e com melhorias genéticas permitiu-se alcançar variedades adaptadas para climas tropicais (África, Jamaica) e frios (Canadá e Europa).
Maconha medicinal
As propriedades medicinais da maconha estão presentes há mais de mil anos no conhecimento das pessoas no Oriente. Evidências apontam que o uso terapêutico da cannabis para dor e outras condições é utilizado há pelo menos 3 mil anos. Esse conhecimento espalhou-se pelo mundo através das conquistas militares ao abrir novas rotas e da escravidão.
Este conhecimento foi gradualmente incorporado no repertório cultural e medicinal da África e América do Sul. Em meados do século XIX nas Ilhas Britânicas, onde já se conhecia o potencial do cânhamo como fibra, o uso medicinal tornou-se popular, e assim virou tema de preocupação religiosa, econômica e científica no Ocidente.
O médico irlandês William B. O’Shaughnessy compilou e sistematizou o uso medicinal popular da cannabis na Índia, onde era utilizada como analgésico, anticonvulsivo para epilepsia, tétano e raiva, tranquilizante, anestésico, anti-inflamatório, antibiótico, antiparasitário, anti-espasmódicos (cólica e diarreia), digestivo, estimulante de apetite, diurético, expectorante e ainda por cima, afrodisíaco.
Da Inglaterra, o uso medicinal da cannabis chegou até à França, e de lá aos Estados Unidos. Em 1860, aconteceu a primeira conferência clínica sobre o uso da maconha no Estado de Ohio. Nos próximos anos, o uso foi registrado em centenas de publicações científicas e laboratórios começaram a produzir tinturas e extratos da planta.
Com o aparecimento de outras drogas e vacinas que podiam substituí-la – analgésicos como aspirinas, barbitúricos e o uso intravenoso de morfina – a maconha tornou-se restrita com a taxação de impostos e os estudos foram obstruídos. Em 1941, a maconha foi retirada da farmacopeia dos Estados Unidos. Apesar disso, o interesse cultural e científico pela planta não declinou.
Nas últimas décadas, em sintonia com os avanços tecnológicos e mudanças jurídicas, países como Holanda, Portugal, Estados Unidos, Canadá, Israel e Uruguay oferecem ao mundo novos elementos para aperfeiçoar a ação positiva da cannabis para a saúde humana e animal.
Bioconstrução
Uma casa pode ser construída com cannabis. Sua versatilidade é tamanha que a maconha tem sido usada para a construção de casas. Sua aplicação industrial deu origem ao tijolo de maconha: o “Hempcrete”. O tijolo é feito das partes de madeira que não são utilizadas pela indústria têxtil e tornou-se tendência nas bioconstruções, que preocupam-se com o impacto no meio ambiente, pois é reciclável, leve e resistente. As casas construídas com tijolo de cannabis também são silenciosas e ajustam-se às temperaturas ambientes, no verão ficam frescas e no inverno retém o calor. O hempcrete permite que a casa respire e transpire.
Têxtil
Durante muitos séculos, o cânhamo tornou-se uma fibra fundamental para a navegação, sendo usada para fazer cordas, velas e partes dos cascos dos navios, permitindo que a estrutura flutuasse. Não existia material que se comparasse em relação a sua prolongada resistência à água salgada e às ondas em alto mar, permitindo que os marinheiros alcançassem distâncias maiores e destinos desconhecidos.
Enteógeno
Enteógeno é uma substância da planta ou a preparação da mesma, com propriedades psicoativas, que causa estados modificados de consciência quando consumida. É usada em contextos espirituais, religiosos e xamânicos. Exemplos de enteógenos incluem o peiote, cogumelos, ayahuasca e psilocibina.
Desde a metade do século XX, esta substância tem sido usada com o propósito de expandir a consciência de uma perspectiva racional e evolutiva. Com base em pesquisas de Albert Hoffman, Timothy Leary e Terence McKenna, e sua popularização através da música e outras artes, fez com que seu uso chegasse a uma nova dimensão espiritual, sem negligenciar o aspecto científico.
O termo é derivado da Grécia antiga: entheos significa “ter um deus dentro de si” e genos “a origem, o tempo de nascer”. Seu significado etmológico refere-se à possibilidade de inspirar-se por um “deus” e também ao nascimento que implica.
No entanto, atualmente várias dessas substâncias encontram-se afetadas pela legislação penal e tratados internacionais sobre psicotrópicos. Em alguns casos, com base no reconhecimento dos direitos tradicionais e culturais de diversos grupos étnicos nativos, em países como o Brasil, Peru, Equador e Estados Unidos se consomem em cerimônias sacramentais e religiosas.
Mesmo com tudo o que esta planta nos oferece, o seu potencial ainda é negligenciado. Se com toda a repressão e criminalização da Cannabis temos todas estas possibilidades, imagine o que mais poderíamos obter se tivéssemos estudos sobre ela? O guia do museu explicou que o Uruguay pretende ser referência nas pesquisas científicas sobre a Cannabis. E quem sabe assim possamos estudar, ler, entender e respeitar a importância da sua existência.