Há muito de periferia na literatura de hoje. Consideremos periférico tudo o que se encontra ao redor do cânone, essa fábrica de imprecisões cercada de anteparos luminosos a espraiar sombras pela concorrência. Observo intensa movimentação em torno de alguns temas. Mas parece que há certa cobrança para que se haja maior engajamento em seus escritos. Em meio a esse oceano de possibilidades, saltam vozes que problematizam a casa-templo, altar-mor de nossa morada.

Bruna Mitrano. Divulgação.

Pode ser necessário que leia cada vida de trás para frente, e a vida do poeta, da poeta, é um sem página, um marcador em busca do próprio livro, um dedo que vira as páginas em busca de um sentido mais propício para as letras que dançam a sua frente. E verso. Bruna Mitrano trata desses dois para cá e também de

dois para lá

gargalhou outra vez sem motivo.

tivesse língua,

lamberia o bico da 38 spl carregada,

pra deixá-la ainda mais aguda,

a noite.

ela,

morreria já a essa hora?

danço.

(não, 2016, p. 65).

Neste instante folheio o livro ao contrário, como se assim me enxergasse no avesso de sua linguagem. E fosse possível interromper o tiro que atinge as têmporas nessa vontade louca de subestimar

a impertinência da cura.

arrancaram meus caninos,

tenho as gengivas suturadas à mostra.

de medo: tormenta

[mãos de pólvora afagando o fogo]

(não, 2016, p. 62).

não, de Bruna Mitrano

O fogo das armas e os fogos das almas em brasa, candeias, cada qual em sua casa. A poesia é linguagem abastada que invade o espaço da morada. Às vezes de dentro, mas muitas vezes, apenas de fachada. A língua ferina que no verso não diz quase nada. O poema feito morada de quem tem algo a dizer. O poema para além do gênero, da palavra, que muitas vezes não diz nada. O poema personificado, como fosse alguém que

tem espinhos na língua.

o encontro é quando lambe o racho da minha sola.

até que o primeiro lapso nos levante às pressas –

ensacamos entulhos com sutilezas de rancor.

nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos.

é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?

sim, estaremos sempre sozinhos –

guardo nossos segredos com muitas mãos,

seu sangue seco nas minhas coxas.

(não, 2016, p. 39).

O corpo-templo é nossa morada. A poesia de Bruna Mitrano faz dessa apologia o tempero rítmico e prolongamento de sua fala. A poesia sendo linguagem, mas esculpida com o arado da escrita no papiro-papel que entalha o discurso necessário da virada. Bruna tem o dom de transformar cicuta em palavra-cantada.

na estrada de terra

da cidade vazia

a criança preta empunha um pedaço de pau.

ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro

quanto ruínas.

a boca intumescida da criança preta gutura

morte ao rei!

e na aridez inalcançável dos pés descalços

resiste

a criança tão criança e velha,

sozinha e livre –

o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.

(não, 2016, p. 15).

Da página onze em frente não há nenhuma letra maiúscula, como as pretenciosas detentoras da norma culta que antecedem os poemas. Maiúscula, verdadeiramente, é a poesia de Bruna Mitrano.

 

capa do livro de Bruna, editora Patuá

REFERÊNCIAS

MITRANO, Bruna. não. São Paulo: Patuá, 2016.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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