Por Thereza Helena*
Quantos de nós sabem que a hora da apresentação é apenas uma das tantas partes que compõe um processo criativo? Via de regra, a construção de um espetáculo envolve ensaio, confecção de figurino, elaboração de partitura corporal, mais ensaios, concepção da maquiagem, da luz, escolha de repertório, além dos ensaios extras.
No caso do teatro musical, todo esse trabalho inclui ainda algumas especificidades como treinamento vocal e corporal voltados para a prática do canto, geralmente associados à técnica do belting[1]. A partir desses ajustes, o ator pode falar, cantar e dançar sem perder as estruturas interpretativas concebidas para sua personagem. Tudo isso ao mesmo tempo.
Os desafios aumentam quando se trata da adaptação de um musical famoso, como é o caso de “Grease”. Se a referência à Broadway por si só já cria as mais diversas expectativas, elas são ainda maiores pelo fato de ser realizada por um grupo de alunos de um projeto social dentro de escola da periferia de Cuiabá. “Nos tempos de Grease”, montagem do Grupo Teatro Imagem para o original de Jim Jacobs e Warren Casey (1971) apresentada no Cine Teatro de Cuiabá, é a culminância do projeto Teatro na Escola, realização em parceria com a secretaria do Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC), que possibilitou aos alunos da Escola Estadual André Avelino ter aulas de teatro musical pelo período letivo de 2017.
Durante o ano, os participantes fizeram aulas semanais de canto, dança e interpretação, além de travar contato com práticas de dramaturgia, figurino, cenário e maquiagem. Todo o conteúdo foi organizado em quatro módulos, totalizando 200 horas sob a orientação da atriz Jaqueline Roque, que mobilizou sua própria companhia e atores convidados para contribuir com o espetáculo dos alunos.
Na narrativa original, Grease é ambientado nos Estados Unidos da década de 1950 e enfatiza o momento de efervescência dos “Greasers”[2] e do estilo de vida das gangues de rua existentes no nordeste e sudeste do país. Inspirado numa experiência pessoal vivida pelo próprio autor durante o ensino médio, a trama acontece na fictícia Rydell High School para, a partir dos amores e conflitos da vida de um grupo de adolescentes, discutir a segregação social e outros temas centrais que alimentavam as manifestações de rebeldia dos jovens da época.
A montagem cuiabana, sem deixar de contemplar os hits do musical original, trazendo versões em português de Summer Nights e You’re The One That I Want, inova ao investir na brasilidade e trazer composições equivalentes ao estilo rebelde do rock com os sucessos nacionais “Vestido de bolinha amarelinha”, da banda Blitz; e “Whisky a Go Go”, do Roupa Nova. A plateia cantando em coro com os protagonistas em cena revela o acerto da escolha.
O conflito continua girando em torno das questões do universo adolescente como na obra de referência e, mais uma vez, faz uso de licenças poéticas na adaptação, empenhando atenção especial na discussão da exigência de enquadramento aos padrões estéticos de beleza impostos ao corpo feminino. Nesse enredo, Mila, uma das garotas da equipe de líderes de torcida, forte tradição norte-americana, sofre repreensões do professor Mike, treinador do time. Embora visivelmente magra, a garota é forçada a emagrecer mais ainda por estar com as medidas em desacordo com os padrões exigidos pelo treinador. Coagida pela ameaça de ser expulsa do time caso não entre no uniforme tamanho P, a personagem se submete a violentas restrições alimentares, comprometendo a própria saúde.
Esse conflito denuncia a realidade enfrentada por jovens do mundo inteiro: o bullying. Em Cuiabá não é diferente, presente tanto na rede pública e particular de ensino quanto em inúmeros outros ambientes em que as relações desiguais de poder e gênero causam dor e sofrimento. A montagem dá maior destaque a essa questão que o original, uma decisão acertada da direção, assinada por Jaqueline Roque. Ao chamar atenção para a importância de atitudes que não negligenciam a situação e em vez disso provoquem reflexão, Jaqueline demonstra a sensibilidade de quem acredita no poder transformador que a arte tem e aposta no teatro como agente dessa transformação.
Feitos esses apontamentos, partilho uma provocação pessoal: com tantos acertos na articulação de conflitos ressonantes entre os jovens norte-americanos da década de 1950 e os brasileiros de 2017, por que continuar situando uma trama tão familiar aos alunos-atores da Escola Estadual André Avelino Ribeiro na Rydell High School?
Não posso deixar de mencionar também o figurino, o cenário e os adereços cênicos, que em total acordo com a proposta do grupo, são singelos, mas muito bem elaborados. O envolvimento de cada membro da equipe de produção é outro ponto que chama atenção. Juntos, eles mobilizaram o público que mesmo numa quarta-feira de chuva, lotou o Cine Teatro Cuiabá.
A meu ver, o grande mérito da montagem é a vibração com que elenco e plateia comemoraram no encerramento do espetáculo. A energia, que lá da última fileira onde eu estava pude sentir, é de uma substância que há muito não vejo em outras montagens, em especial nas profissionais; ouso dizer que talvez se trate da reinvenção da potência do teatro AMAdor, aquele teatro que sobretudo ama. Aquele mesmo ar revolucionário que, nos anos 1950, inspirou Grease na Broadway, fez o Brasil assistir o nascimento dos Grupos Arena e Oficina, cujas práticas criativas reverberam até hoje.
Pensar, ensaiar e articular um projeto dessa magnitude numa escola estadual de Mato Grosso diante do desmantelamento dos aparelhos públicos de educação é um desvio, um ato de subversão, de resistência, um investimento de incentivo louvável ao protagonismo de cada um dos alunos que participaram do projeto Teatro na Escola.
*Thereza Helena é atriz, performer e diretora. Aglutinadora por vocação, integra o coletivo O Levante, Parágrafo Cerrado e Mais Mana.
**Texto escrito para o Parágrafo Cerrado a partir da apresentação de encerramento do projeto Teatro na Escola realizado no Cine Teatro Cuiabá, em 06 de dezembro de 2017.
[1] Belting: técnica que aproxima o registro da voz falado do resgistro da voz cantada. Surgida nas escolas dos teatros musicais americanos e ingleses, foi introduzida no Brasil no início da década de 1990.
[2] Greasers: jovens trabalhadores norte-americanos.