No retrovisor do carro a paisagem refletida mistura o cinza do asfalto com o verde das plantações. No espelho está aquilo que poderia ser uma miragem. No topo do morro em Chapada dos Guimarães, antes de se chegar a caverna Aroe Jari – a maior de arenito no Brasil – grandes extensões de terra, onde antes havia cerrado, ocupadas por plantas verdes, quase rasteiras, rentes ao chão. Dizem que para chegar ao paraíso é preciso passar pelo fogo sem se queimar. Os quilômetros e quilômetros de asfalto ou de terra batida trazem uma semelhança nas estradas de Mato Grosso: hectares e hectares de monocultura te cercam dos dois lados da rodovia. Uma paisagem imutável cujo sentido atravessa a existência pintando um quadro sombrio: a desertificação da humanidade.
Todas essas imagens chegam e em um piscar de olhos volto ao momento. Os passarinhos cantam. O verde inunda meus olhos. Mas ainda vejo a soja. O milho. O algodão. A monocultura. A terra seca. Wanderlei Pignati está diante de mim, sentado em uma cadeira de madeira no quintal da sua casa. A atmosfera tranquila daquele ambiente difere e muito da densidade do assunto. Médico, pesquisador, pós-doutor, Pignati compõe o quadro da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), responsável por pesquisas que são referência em todo o mundo. Uma delas é sobre o leite materno contaminado por agrotóxico. Uma história que volta vez ou outra aos noticiários. Lucas do Rio Verde. O município garoto-propaganda de toda a agrocultura. Reverenciam o agronegócio como a um deus.
“Maior consumidor de agrotóxico e importador do mundo, o Brasil, o maior produtor de soja, de milho, de algodão, de boi e todo esse processo produtivo a gente chama de químico-dependente. Depende de fertilizante químico, agrotóxico e sementes transgênicas, maquinários agrícolas, financiamento agrícola, todo o pacote tecnológico do agronegócio. E pesa bastante no Produto Interno Bruto (PIB), na balança do Brasil, mas pesa bastante na saúde da população e na saúde do ambiente, pois deixa o ambiente poluído e contaminado, não só com fertilizante e agrotóxico, mas com desmatamento, então tem essa cadeia produtiva. Para nós que trabalhamos com saúde pública e questão ambiental é bastante prejudicial ao nosso povo e ao Brasil”, disse já na primeira pergunta sobre o país ser o maior consumidor de agrotóxico do mundo.
O cidadão brasileiro consome 7 litros de agrotóxico por ano e Pignati explicou como é feito este cálculo.
“É uma conta que fazemos pelo número de consumo e por habitante. Quando colocamos 7 litros por habitante é por que no ano passado se consumiu nas nossas lavouras, se pulverizou cerca de 1 bilhão e 400 milhões de litros de agrotóxico e ai dividimos isso por 200 milhões de habitantes. Não é que consome, é como exposição. Então ele está exposto, pois uma parte fica nos alimentos, não só soja e milho, mas arroz, feijão, verduras, na água, tanto superficial quanto subterrânea. Temos demonstração que ambas estão contaminadas, e uma parte fica no ar, condensa e desce com a chuva. Outra parte vai para os animais, ou através da pastagem, se usa muito agrotóxico nas pastagens e temos a maior produção de carne em Mato Grosso. E parte da ração a base de soja e milho para alimentar bois, porcos, peixes, também estão contaminadas com agrotóxico. Em alguns estados a exposição é maior”.
“Em Mato Grosso, o maior produtor de soja, milho, algodão (70% do algodão é produzido aqui) e é o que mais usa agrotóxico, você vai ter um consumo que pegamos os dados do próprio Indea (Instituto de Defesa Agropecuária do Estado de Mato Grosso), que vai dar em torno de 130 milhões de litros de agrotóxico, dividido por 3 milhões de habitantes, são mais de 40 litros por habitante. E alguns municípios chega a 300 litros. Os maiores produtores tem população pequena”.
Pignati destaca que este processo produtivo do agronegócio tem bastante impacto no meio ambiente. “Esse modelo de plantar com máquinas e pulverizar retirando todas as árvores, a primeira coisa é a desertificação, ou seja, o primeiro impacto é nesse desmatamento e agora vai ampliar por que liberaram a prática do Correntão em Mato Grosso. Agora uma nova área, considerada Cerrado, de Nova Xavantina, Canarana, Água Boa, essa área entre o Xingu, Goiás e Tocantins, é um novo eldorado de Mato Grosso. Pelo Código Florestal se pode desmatar 65% do Cerrado e deixar 35% e na Floresta Amazônica só pode desmatar 20%. É uma nova destruição do Estado, do Cerrado, da floresta”.
O pesquisador aponta que o segundo impacto são as poluições dos rios e córregos. De acordo com Pignati, todas as nascentes do rio Xingu, as nascentes que abastecem o Pantanal, o rio Diamantino, o rio Cuiabá, o rio São Lourenço, o rio Vermelho nascem dentro de plantações de soja e milho e levam esses agrotóxicos para o Pantanal.
O caminho para uma mudança passa pela socialização da informação sobre os agrotóxicos e os malefícios ao ambiente e à saúde humana e animal, a conscientização da população que deve exercer pressão nos órgãos de controle e a mudança da legislação.
“É preciso fazer essa transição para outro modelo, para a agroecologia. Os alimentos cada vez mais estão contaminados com agrotóxico, o ar, a chuva. Na exportação de alimentos, muitos nem são alimentos, são mercadoria. Se está contaminado, foi feito desta maneira com toda essa destruição, virou mercadoria. Alimento é diferente. Essa mercadoria que se chama alimento tem destinos separados em nível mundial. Na UE não entra determinado tipo de alimento por que está contaminado com agrotóxico, não entra transgênicos in natura, e como a soja tem mais agrotóxico, para onde vai? China, Índia, países africanos. E quando o alimento está muito contaminado nem esses países recebem. Já teve navio voltando da China com soja contaminada por agrotóxico não permitido. Suco de laranja voltou dos Estados Unidos. E foi descartado? Não. Está no mercado interno.”
Para Pignati e qualquer pessoa com o mínimo de consciência este não é um modelo de desenvolvimento e sim de destruição. “É a destruição da vida humana, animal e ambiental. Quando fazemos uma análise mais integrada, essa pesquisa do leite materno apontou não só em Lucas do Rio Verde, mas também em Campo Verde, Primavera, Sapezal, Campo Novo do Parecis e agora em Rondonópolis. As regiões mais produtoras do Estado, que é a região de Sinop, Lucas, Tapurah, Nova Mutum, Diamantino, Tangará, Sapezal, Campo Novo do Parecis, Rondonópolis, Primavera, Campo Verde e agora surgindo Canarana, Água Boa, Nova Xavantina, essas regiões tem maior incidência de câncer, má-formação, distúrbios endócrinos e mentais, temos uma pesquisa nova nessa área com a Fiocruz”.
“A contaminação é global e é maior nesses municípios por que você tem um uso muito grande, são municípios pequenos com utilização de milhares de litros de agrotóxicos. Lucas do Rio Verde por exemplo, usou nessa última safra 5 milhões de litros, Campos Verde também. Sapezal e Sorriso foram 10 milhões, por que Sapezal é o que planta mais algodão e o que mais usa agrotóxico, então são 40 litros por hectare e a soja é 12, o milho é 6 e isso por safra, por ano. São verdadeiras cidades mergulhadas dentro da plantação de soja, milho, algodão e consequentemente em agrotóxico. E isso vai comprometer o homem”.
O caminho para mudar é a agroecologia, enfatiza Pignati que complementa: “Já temos uma produção orgânica imensa. Somos os maiores produtores de café orgânico, açúcar, álcool, cacau, inclusive em grande escala desde que você faça o manejo adequado, o controle biológico. É preciso largar essa prática de usar muito produto químico e sementes transgênicas que estão acopladas ao uso de agrotóxico, que são resistentes a ele, o que permite usar mais ainda. Outra é a divulgação, a população precisa saber disso tudo. O governo não divulga. É preciso ter acesso à informações livres e não a informações abortadas. Isso não é democracia.”
Essa mordaça, esse silêncio, essa imobilidade sobre a paisagem que anuncia a desertificação está embrenhada em todos os segmentos da sociedade. No poder público, o agronegócio é representado por aqueles que foram financiados eleitoralmente para defender seus interesses. O Ministério da Agricultura tem no poder um dos maiores produtores de soja do mundo, o ex-governador de Mato Grosso Blairo Maggi. O mesmo quadro se repete em menor escala nas prefeituras, câmaras municipais, secretarias, e assim por diante. O interesse que circunda estas políticas públicas, estas legislações voltadas a atender o grande capital vai na contramão da vida – não só a vida humana, mas a de todo o planeta.
“Por outro lado tem o governo que é corporativo, tanto a nível estadual quanto nacional, são as corporações que estão representando. Quem é secretário de meio ambiente, quem é o de agricultura? Todos eles representam o que chamamos de Capital, de agronegócio”, encerrou Pignati.
esse Pignati me emociona até a medula, esse homem tem uma seriedade no que faz e aplica que dá até uma esperança de que consigamos desenvolver uma consciência em torno desse tema, na verdade o sujeito já foi da politica pública mas lá num conseguiu fazer nada, esse tipo de trabalho, esse tipo de trabalhador da saúde a gente conta nos dedos, médico hoje em dia só quer saber de carrão e casas confortáveis em condomínios fechados, essa luta inglória eu diria até insana é para poucos e bons como diria Bia Marques, esses dados são aterradores, tem um livro num tem? que fala dessa problemática, um livro do DR Pignati, gostaria muito adquirir um, vou replicar essa matéria e dizer que aqui em Mato Grosso nosso galinheiro é cuidado por lobos famintos e loucos…(parabéns por essa matéria e que esse foco seu não se apague nunca, Parabéns!!!!)
Parabéns à Mariana pelo belo e contundente texto, parabéns ao Pignati pela luta incansável diante dos crimes cometidos contra a população e o meio ambiente pelo agro, que não é tudo, é apenas parte, e a parte tóxica!
Agora entendi o porquê do anuncio a toda hora na TV. agro é tudo ………
Os dados são tão burros