Por Bruno Rodrigues*
É evidente que diante de situações caóticas seja muito difícil enxergar além da dor, incertezas ou angústias. Contudo, a história nos ensina que sempre há um depois, e que esse depois pode ser um mundo melhor a depender da capacidade da sociedade em extrair aprendizados do caos.
Não custa lembrar que dos escombros da assombrosa “peste negra” nasceu a esplendorosa sociedade renascentista. A peste, que pode ter dizimado até 1/3 da população europeia – o que equivale de 75 a 200 milhões de indivíduos- no século XIV, assim foi batizada porque as infecções causavam grandes manchas no corpo acompanhadas de inchaço, calafrios, febre alta, tosse com pus, sangue, náuseas e dores variadas. Segundo relatos do período, após constada a infecção, a morte poderia chegar em até dois dias. O cronista florentino Matteo Villani foi um dos que registaram a peste em solo italiano:
(…) uma peste entre homens de todas as condições, de qualquer idade e sexo, que começavam a cuspir sangue e morriam alguns subitamente, alguns em dois ou três dias, e outros demoravam mais a morrer. E aconteceu que quem cuidasse do doente, pegando a doença ou, infectado por aquela mesma corrupção, tornava-se rapidamente doente e morria do mesmo modo; a muitos inchava a virilha, e a muitos sob as axilas à direita e à esquerda, e a outros em outras partes do corpo, [de modo] que se podia geralmente encontrar um inchaço singular em algum lugar do corpo infectado.
É realmente difícil imaginar como se reconstruir diante do caos, mas o fato é que a peste deu um “golpe de misericórdia” em toda estrutura feudal, e depois todo um mundo diferente floresceu com o crescimento de grandes cidades, advento de uma nova forma de pensar as “ciências políticas” (especialmente com Maquiavel), aprimoramento das técnicas de navegação – que resultaram na chegada a outros continentes – e, principalmente a evolução da medicina. As medidas recomendadas para evitar o alastramento da peste pela Faculdade de Paris em 1348 são exemplares nesse sentido, pois compreendiam desde a fumigação dos domicílios e praças públicas a orientações para que as pessoas evitassem comer galinha e carnes gordas. As orientações profiláticas adotadas na Europa chegaram também a fazer portos a declararem quarentena, como alguns na Itália que obrigavam marinheiros provenientes de áreas endêmicas a permanecerem em isolamento por quarenta dias.
A Cuiabá que fez aniversário na última quarta (8/4), para ultrapassar os seus três séculos de história, também precisou superar numerosos obstáculos. Não bastasse a longínqua distância dos grandes centros urbanos do país, as temperaturas demasiadamente elevadas, a falta de braços para garantir a subsistência ou o fato de ser um dos principais núcleos populacionais das fronteiras do território brasileiro, precisou enfrentar uma severa epidemia de varíola no ano de 1867.
De acordo com Joaquim Ferreira Moutinho, que vivenciou a epidemia e foi o primeiro a relatá-la, de um total de 12 mil habitantes, Cuiabá perdeu ao menos a metade da população entre julho de 1867 a janeiro de 1868. A varíola, segundo o cronista, teria chegado a cidade através de soldados que retornavam da campanha em Corumbá, pois naquela época o Império brasileiro se encontrava em guerra com o Paraguai (1864-1870).
O surto verdadeiramente pegou de surpresa a toda a sociedade cuiabana e autoridades, que tentaram todos os recursos para controlar o alastramento, como a construção de hospitais, isolamento dos doentes em áreas de “lazarentos”, quarentena, atendimento domiciliar e todos os procedimentos medicinais disponíveis na época – aplicação sangrias, clisteres, sanguessugas, entre outros. Não é difícil imaginar, que em um primeiro momento, o setor mais atingido na capital tenha sido a população pobre. A historiadora Marlene Vilela, no levantamento dos sepultamentos realizados em Cuiabá entre agosto e setembro de 1867 demonstra que o setor mais atingido pela epidemia em Cuiabá era formado por pardos e pretos:
Em que pese isso, em pouco tempo a capacidade de atendimento médico à varíola na capital foi extrapolada e a cidade inteira se transformou em um imenso cemitério, independentemente da posição social. Em palavras de Moutinho: “Honras, riquezas, distinções, tudo estava nivelado! A peste é eminentemente democrata”.
Ao fim desta breve reflexão fica a pergunta: por que olhar para o passado diante da crise que bate em nossa porta?
Primeiramente para extrairmos lições, nos situarmos no presente e criarmos à nossa frente um horizonte de expectativas. Não adianta apenas olhar para o abismo; é preciso ver além. A pandemia passará, assim como passou a Peste Negra e a Varíola de Cuiabá; e no dia seguinte haverá a oportunidade de construir um outro mundo. Repetiremos os mesmos erros? Quanto tempo levará para outra epidemia assolar nosso planeta ou cidade? Que essas palavras estimulem mais consciência, solidariedade e, principalmente, a valorização da nossa história.
*Bruno Pinheiro Rodrigues é cuiabano, doutor em História e atualmente leciona na Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: professorbrunorodrigues@yahoo.com.br
Ótima reflexão e as obras de arte que ilustraram o artigo, todas muito pertinentes. Parabéns!