Edelson Santana

Houve um tempo em que Cuiabá era a maior cidade do meu universo, isso quando o mundo se mostrava tão pequeno quanto eu. Na primeira vez que tomava o Andorinha e me afastava de casa, eu guardava na cabeça todas as recomendações. Manter nas mãos a autorização do juiz de menores e avisar o motorista do ônibus que o desembarque seria no Coxipó, pouco antes da ponte, em frente a uma loja de material de construção.

Você compra na Manucenter como se comprasse em São Paulo… A comparação na letra do jingle grudado na mente apontava a dimensão da cidade e reforçava a sensação de que eu pisava o chão de uma capital. Era só pegar a rua lateral do comércio onde se vendia de tudo para casa, atravessar um pasto para chegar ao patronato, que me receberia como aluno interno do ginasial.

Dante de Oliveira no Congresso Nacional

Bastante diferente aquele ano, pelo menos eu achava, na minha visão infantil. A emenda de um deputado cuiabano havia sido derrotada no ano anterior em uma votação cheia de parlamentares ausentes, mas a mobilização pelas eleições diretas em si já nos dava a ideia de que a democracia seria uma conquista possível. O presidente acabou sendo escolhido por um colégio eleitoral, e mesmo assim a nossa energia se via renovada pela promessa de uma liberdade ainda desconhecida para a maioria de nós… Se a vida começasse agora e o mundo fosse nosso outra vez, a vinheta do estreante Rock in Rio traduzia o espírito dos novos tempos.

Betinho, símbolo da luta contra a fome no Brasil

Um legado de miséria se estendia no país desde o fim do tal milagre econômico. Dívida externa, hiperinflação, desemprego, desigualdade social, palavras constantes no economês das notícias diárias. No mural do colégio, um cartaz em fundo azul com pessoas amarelas, como retirantes de um quadro do Portinari, trazia o tema e a urgência da campanha da fraternidade: “Pão para quem tem fome”. Em algumas missas, em que a liturgia era de libertação, o canto sagrado virava quase um protesto: Deus é a favor dos pobres, com eles caminhará. E das correntes do egoísmo vai nos libertar. A esperança tomava conta e prevalecia ao apesar de…

A fome matava mesmo em países africanos, a seca assolava o Nordeste brasileiro, e a gente ensaiava “We are the world”. Chovia muito além-mar quando comemoramos pela primeira vez uma vitória do Senna, no mesmo domingo em que o céu fechou por aqui sob o anúncio da morte do presidente eleito. Diverticulite, diziam, e a novidade do termo aderia a um vocabulário ainda escasso, bem como a constatação de que não raramente a tristeza se vestia de palavras alegres, talvez para que não deixássemos de pensar que a vida, mesmo assim, poderia continuar a ser divertida.

Anos 80, década explosiva para o rock Br

E esse ano era de nítida euforia, como se as nuvens carregadas começassem a ceder para um céu de tempo firme, eu sentia. O silêncio da sala de estudos no patronato às vezes se esvaía ao som de músicas do mundo que chegavam soltas no ar, muito mais livres que nós. As canções do padre Zezinho, em meio às orações noturnas, se viam abafadas por acordes vazados de alguma boate nas proximidades. Os teclados falavam mais alto, do rock nacional ao fricote baiano, e arrebatavam as nossas jovens almas.

A festa corria solta também nas ruas. A capital teria pela primeira vez em décadas eleições municipais. Dois candidatos, dois partidos, dois tipos de pensamento. Na televisão, o governador dava banana ao espectador incrédulo – e eu via que a coisa então se mostrava séria. Como final de campeonato, um Fla x Flu em que todos os adversários queriam pegar o Zico que ainda não havia perdido aquele pênalti. Na Chácara dos Pinheiros, os carros de som passavam a toda hora e, indiferentes à disputa, emendávamos os jingles de campanha em uma mesma melodia, na certeza de uma união nada improvável para algum dia: Dante sim, Dante já, o futuro prefeito de Cuiabá. Para prefeito, para prefeito, o Gabriel é nosso amigo do peito.

Roque Santeiro, novela marcante nos anos 80

Entre um livro e outro da Coleção Vaga-lume, eu conseguia reparar nos trejeitos de um roqueiro metido a popstar na tevê que fazia caras e bocas para rimar revolução com coração e manter a audiência com o olhar. Em outra cena, o que parecia histeria era também coreografia e letra em imperativo liberante: “não se reprima”. Modos de expressão desacompanhados de uma velha censura a determinar o que estava certo ou errado, como lembrava o bordão do vilão de Roque Santeiro, a saga do herói e de sua viúva, “a que era sem nunca ter sido”, que pôde enfim ser exibida.

O ano já estava quase no fim quando a nossa esperança alcançava o êxtase. O autor da emenda que reivindicava o direito de votar foi eleito, após uma sucessão de prefeitos nomeados na capital. Eleições diretas para governadores e presidente estavam asseguradas e existia a promessa de uma nova Constituição para substituir a de 1967, promulgada e modificada por atos autoritários como o AI-5. Dava até para confiar que a carestia, aquela herança maldita dos anos de chumbo, receberia do novo presidente um golpe fatal, tipo um cruzado à direita desferido pelo Maguila em dia bom.

Tetê Espíndola, na TV, com a música Escrito nas Estrelas

Antes disso, novembro ainda tinha trazido para nós uma festa da música tupiniquim em grau superlativo. A final do Festival dos Festivais nos fez reconhecer uma vitória tão nossa, como se Mato Grosso voltasse a ser um estado somente. O Brasil, totalmente espantado, se perguntava na matéria de capa da revista Visão: “Que voz é essa?”. E essa voz era de Tetê Espíndola, que já tinha gravado Pássaros na garganta e cantado ao mundo um sertanejo lisérgico.

Diretas Já, movimento pela democracia

À pequena altura de uma nova vida que apenas iniciava, porém, não era momento de pensar sobre as surpresas que o destino poderia ter nos preparado. Como nas férias do internato, a ideia seria aproveitar cada hora daqueles dias de menos ordens e paredes. O acaso talvez nem sequer existisse, e a liberdade seria construída e mantida por todos a cada dia. Poderia haver, sim, imperfeições, percalços, recuos e até dúvidas sobre a sua real existência em dias de atmosfera mais sombria. Mesmo na sua frágil constituição, feita hoje também de derrotas e recuos, já sabíamos da importância do poder de escolha e nos sentíamos até mais confiantes no futuro apenas de ouvir a palavra democracia pronunciada por qualquer pessoa em 1985.

 

Edelson Santana é jornalista, mestre em letras e linguística, e tira sua erudição de almanaques e do verso das folhinhas

3 Comentários

  1. Parabéns Edelson. O seu maravilhoso texto possui asas que nos guia nessa viagem à nossa história. Quanto prazer e boas lembranças sobrevividas entre as agruras e vicissitudes daquele pedaço de tempo.

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