Tinha voltado a ler romances com a mesma excitação e frequência de quando passava noites em claro lendo Meg Cabot aos 11 anos. Começou primeiro com Americanah, da Chimamanda Ngozi Adichie. Engraçado que foi logo depois que começou a se corresponder com aquele americano estagiário do Departamento de Estado dos EUA, de ar arrogante e ao mesmo tempo divertido, que era totalmente o seu oposto, mas com uma inteligência e maturidade acima da média e uma capacidade de argumentar que a atraía. Sentia aquela sensação de adolescente apaixonada no peito outra vez. Que merda, hein.
Ela já sabia que tinha dificuldade e insegurança em debater assuntos complexos demais, afinal não era uma pessoa que lia tantos livros teóricos ou escrevia artigos acadêmicos e tampouco estava acostumada a se relacionar com opostos tão opostos, e ainda por cima intelectuais como ele. Decidiu que precisava se informar mais e começou a ler mais sobre política. Lamentou por um instante por ter decidido isso por causa de um homem que nem conhecia. Talvez tivesse lhe faltado uma motivação a mais. O fato é que ela voltara a ler e também a escrever. Crônicas, poemas, contos, livros teóricos e até literatura moderna brasileira.
O desejo de encarar esse novo desafio era intenso e queimava em seu peito. Em condições normais, ela se irritaria facilmente com ideias antagônicas demais às suas. Teria preguiça de debater, acharia que não valeria a pena. E, realmente, em muitos casos nem vale mesmo. Mas agora, sentindo-se mais madura e pronta para mostrar que tinha, sim, uma mente aberta e uma opinião mais bem formada, disse a si mesma que iria parar com a mania tola de revirar os olhos e fechar os ouvidos para o desconhecido, mesmo que esse significasse ideias mais conservadoras. Ela era uma jornalista recém-formada e tinha noção de que parte da sabedoria humana também vem da capacidade de escutar os dois lados para, assim, tirar suas próprias conclusões. Ela sabia que poderia aprender e ensinar.
Antes mesmo de conhecê-lo ao vivo, o estômago embrulhava só de pensar nele. Ironicamente, tudo que ela queria no começo era transar. Mas agora já era. Que merda, hein. E eu já disse que eles eram completamente diferentes? Vou provar: Ele atleta, jogador de rugby, “rato de academia”, trabalhava em um dos órgãos de defesa e segurança mais questionáveis, defendia com argumentos sólidos e uma convicção quase que semi-patriota o país de origem, sua política interna e externa, seu exército, a economia de livre mercado… enfim, o combo todo. Ela uma jornalista, feminista marxista e comunista brasileira (não preciso dizer mais muito, né?). Ele Norte. Ela Sul. Talvez a única semelhança era que ambos estavam morando em uma nação diferente pelo mesmo período de tempo. Alemanha, Baviera.
Marcaram de se encontrar primeiro num pub irlandês, em Nürnberg. Caminhou de cabeça erguida até o ponto de encontro dos bebuns e ficou esperando ele na frente, enquanto sua face era iluminada por um refletor amarelo que brotava da calçada. Ventava forte. Os cabelos loiros dançavam conforme a música do ar pesado e congelante e o cachecol acompanhava o ritmo. Finalmente, o seu encontro chegou. Era mais baixo do que imaginava e, para sua surpresa, usava um óculos de grau de armação preta. Até então ela nem sabia que ele usava óculos. Talvez ele estivesse se esforçando até demais para parecer intelectual. Riu por dentro, achando aquele gesto fofo e cômico ao mesmo tempo. Se cumprimentaram com um abraço apertado.
Lá dentro do pub não havia lugar, mas ele decidiu pelos dois que ficariam ali até ver se esvaziava. Ela concordou, ainda sem graça, tirando o casaco e pendurando-o no cabideiro. Furtou um cardápio da mesa ao lado, onde se encontrava um homem meio dormindo, e decidiu por uma Guinness. Com ar de superioridade e surpresa fingida, ele fez uma careta e disse, “você está na Alemanha e de todas essas cervejas maravilhosas daqui você vai escolher logo a Guinness? Que é horrível por sinal”. Ela não gostou daquele comentário. Ora, já tinha experimentado todas as cervejas da região possíveis. Além do mais ficou sem entender aquela reação. “Qual é a desse cara?”, pensou. Respondeu com sarcasmo, “bom, não queria te lembrar do óbvio, mas esse é um pub irlandês, não alemão, e que por sinal foi você quem escolheu”. Houve uma pausa, um silêncio desconfortável e, finalmente, a resposta. “Ok, eu vou tomar o que você tomar”. Oram, vejam só, que flexível. E brindaram com um sonoro “Prost!” mais ou menos forçado.
No começo ficou receosa de ele começar com uma conversa pomposa, política, profunda demais, e ela não acompanhar direito. No fim só pensou: Foda-se. Eu não sou só uma fala. Uma frase. Uma ideia. Sou um oceano, um universo complexo de infinitos pensamentos. E então relaxou. Falaram sobre as fraternidades americanas e ela comentou como achava absurdos os tipos de trotes que eles faziam, citando a primeira coisa que veio à cabeça: obrigar os calouros a comer sanduíche de sêmen. De repente, estavam rindo e, pouco tempo depois, os membros inferiores já se tocavam com intimidade. O tom casual da conversa não mudou durante as duas horas que ficaram no bar. Só que, depois, ela iria perceber que ele tampouco se interessou em perguntar mais sobre ela, sobre o Brasil, enquanto que ela tinha um claro desejo de aprender mais sobre a cultura dos Estados Unidos. E na verdade acabaram só falando disso mesmo. Estados Unidos. Estados Unidos. Se sentiria um pouco frustrada e talvez arrependida de não ter falado mais sobre si mesma. Mas provavelmente ele nem repararia. Só que isso não era necessariamente algo bom, era?
Estava quente demais lá dentro. Era uma das coisas que ela não gostava nos estabelecimentos alemães. Por que diabo tinham que deixar os aquecedores ligados em temperatura de verão durante o inverno? Era um saco ter que dar uma de cebola. Tirar casaco, pulôver, e ainda assim suar como porco lá dentro. Aquele povo estava muito mal (ou seria bem?) acostumado ao luxo da maior economia da Europa. Então a primeira cerveja terminou e ela precisava ir ao banheiro. Olhou-se no espelho com admiração, fazendo caras e bocas e dizendo pra si mesma o quão linda e maravilhosa ela estava. Não, melhor, o quão maravilhosa ela ERA. Só que notou que as axilas começavam a transpirar, criando duas manchas de suor. “Great. Fucking great”, suspirou alto em inglês fazendo sotaque americano fingido e revirando os olhos, como se tivesse esquecido subitamente que sua língua materna não era aquela. Começou a rir de si mesma. Era algo que fazia com frequência, aliás. Num gesto, levantou os braços e cheirou a parte debaixo. OK, não estava fedendo. Menos mal. Se sentiu enojada por um instante, mas logo em seguida soltou mais uma gargalhada que logo foi quebrada por uma alemã que entrava no banheiro, censurando-a com o olhar de alguém que não entende ou não aceita a felicidade alheia. Alemão não sabe mesmo o que é diversão.
Voltou para o seu assento. Já encostados um ao outro e numa oportunidade de silêncio, seus lábios se tocaram. Ele não usou a língua adequadamente, o que foi meio broxante. Então de repente ele se inclinou em direção ao seu ouvido e ela pensou que iria ouvir alguma provocação, mas em vez disso ele fez uma expressão engraçada e sussurrou: “O cara ali do lado não tira os olhos de você desde que você chegou”. Ela se virou pra trás e notou um homem rechonchudo e loiro, de bochechas coradas, sentado ao centro no meio de três outros bêbados. Típico alemão. Ao notar sua presença, ele rapidamente virou a cabeça pro lado tentando, sem sucesso, disfarçar o constrangimento. Ela deu de ombros, agarrou o copo e deu o último gole. Garçom, vê outra por favor.
Ele estava usando uma pulseira de silicone com as cores azul, vermelho e branco e as letras U-S-A estampadas de branco. Ela comentou, jocosa, o quão feio era o acessório. “Bom, foi presente do meu irmão, eu não tiro por nada”. Arrependeu-se levemente, mas não se desculpou. Em vez disso, para tentar disfarçar, pediu então que usasse por um tempo. Na verdade, achava meio ridículo a ideia de vestir qualquer coisa que remetesse aos EUA, mas ele não hesitou e pediu para que estendesse o braço. Ela só tiraria a pulseira ridícula no dia seguinte.
No fim, já meio bêbados mas conscientes, pagaram a conta e arrastaram seus corpos já não tão sóbrios assim até o lugar onde o Toyota sedan preto automático estava estacionado. Era realmente um carro de executivo, algo que no Brasil poderia ser usado por políticos, diplomatas, advogados. Mas ali quem sentava no banco do motorista era um estudante americano de classe média alta de 24 anos. No dia seguinte ela descobriria que o carro era uma “fêmea” chamada Coretta, em homenagem a esposa de “Martin. Luther. King. Junior”, como ele fez questão de enfatizar, ao mesmo tempo que perguntava a ela se sabia de quem estava falando. Fuck. What the hell am I doing here?
Chegaram e se beijaram. Ali ela sentiu a língua um pouco mais. Mas ainda não era um beijo 100%. Olhar pro corpo dele compensava a falta de habilidade com a língua, no entanto. Ele era realmente delicioso. Aquele corpo atlético, definido, perfeito; aquele braço forte envolvendo em seu corpo… E transaram. Só que a performance não foi exatamente como ela desejava. Além do mais faltava o calor, a paixão do latinoamericano. Ele parecia hesitante na hora, como se não soubesse muito bem como tratar aquele corpo, mas a encarava com a mesma animação que um arqueólogo fascinado por uma descoberta inédita. A pele preta de tom claro dele tocou a pele branca leitosa dela. Eram, afinal, um contraste bonito. Ela lembrou quando disse com naturalidade antes de eles se verem que ela tinha um corpo flácido e ele comentou que era a pior palavra que poderia usar. Ela não entendia o por quê. Não tinha comentado de forma pejorativa. Ficou pensando o que tinha de errado, afinal, em falar em pele flácida. Achava natural e não tinha vergonha disso. Tinha estrias, celulite. Não era nenhuma atleta e seu corpo não era definido mesmo. E foda-se.
Adormeceram. Quando acordaram no outro dia, o quarto estava frio e ela se tapou com o edredom, encolhendo o corpo ao mesmo tempo que os pelos eriçavam-se. Deitou-se sobre o dele, encostando as narinas de leve em seu peitoral, sentindo o aroma quente da sua pele.
E assim voltaram a conversar. E a discordar. Começou quando ela disse que Eminem era misógino e que o Hip Hop mainstream não a atraía por motivos semelhantes; ele justificou, apontando todo um contexto sobre opressão e desigualdade racial e social. Ela achou interessante, mas não se convencera. Mesmo assim, não quis seguir o debate. A verdade é que as diferenças de opinião, a necessidade dele de, sem mais nem menos, falar por quase 2 horas sem parar, praticamente lecionando uma aula de História sobre a sociedade moderna e contemporânea ocidental, a entediaram, mas ao mesmo despertaram uma curiosidade estranha. Durante a aula, ela praticamente não falou. Deixou que ele pensasse que estava ensinando tudo aquilo, como se ela estivesse escutando pela primeira vez. Mas quando ele deu um escorregão sobre uma informação relacionada a ditadura militar no Chile e ela o corrigiu, ele tropeçou nas palavras e pediu desculpas e continuou a narração. Em alguns momentos o pensamento dela voava longe, imaginando os dois transando de novo e de novo.
Sentada na cama, ela comeu uma banana já passada do ponto e um bagel meio murcho com manteiga esquentado no microondas. Depois, ele mostrou um vídeo de um cara que fazia piada falando sobre o cachorro. Ele ria alto, comentando o quão genial aquele cara era. Na verdade ela achou tudo muito forçado, sem graça.
Depois de semanas de um inverno nublado, o Sol finalmente reluzia. Ele olhou no celular e comentou: “Uau, tá fazendo SÓ 25 graus!”. Por um segundo ela arregalou os olhos incrédula, mas depois lembrou que ele estava falando em Fahrenheit. É claro que ela não sabia quanto era 25 graus em Fahrenheit, então certificou-se da temperatura “real”: -3 graus celsius. Ah, seria um sonho se tivesse 25… sentiu, no mesmo instante, uma saudade apertada do Brasil. O relógio marcou 11 horas e ele anunciou que precisava ir. Era aniversário do chefe e hoje à noite seria a “Bro’s night”. Ela imaginou os homens reunidos, com cerveja na mão, assistindo futebol, comendo carne, ele comentando que trepou com uma brasileira na noite anterior, os amigos uivando e dando tapinhas nas costas como se fosse um grande prêmio.
Arrumaram-se e saíram de casa. Entraram novamente na tal da Coretta e seguiram rumo à estação de metrô onde ele a deixaria pela primeira e última vez. Despediram-se com um sorriso tímido e ela tentou, mais uma vez e sem sucesso, beijá-lo usando a língua. Ele travou. Foi estranho. E o beijo acabou saindo sem graça, chocho. Algo dizia que não estava confortável e que não iriam se ver de novo. Sentiu-se subitamente deprimida e perturbada pelo pensamento. Mas depois sua feição mudaria de cor.
Escutou quase todo o álbum acústico do Zé Ramalho a caminho de casa, até que, ao chegar na última estação do metrô, os headphones suspiraram pela última vez. Retirou-os, mas ainda podia sentir a música em seus ouvidos. Não sabia muito bem resumir o seu estado de espírito. Estava viva, radiante, linda. Talvez o Sol tivesse grande culpa nisso. Era um poço de sentimentos simbióticos. De alguma maneira, podia dizer que era outra mulher. Mais forte, mais corajosa. Pronta pra enfrentar o mundo.
Não ligava mais pra ele. Se ele fosse mandar mensagem ou não. Se eles fossem continuar a se ver ou não. Porque ela sabia, instintivamente, que não ia acontecer. No fundo, ela não queria. Antes de atravessar a rua, ela parou com as mãos nos bolsos do casaco, olhou pra cima e cerrou as pálpebras, com a atenção de uma cientista que analisa cuidadosamente o ambiente natural. O céu estava azul azul azul. Limpo. Claro. Quis tocá-lo. Num gesto, apontou o indicador em direção às copas das árvores. Teve a impressão de que iria flutuar. Naquele momento lembrou de uma frase de Americanah que ficou estocada em sua mente. “E sua alegria se tornava inquieta, batendo as asas dentro dela, como quem busca uma chance de sair voando”. E flutuou.
revelações insinuantes, essa familia Marimon num é fácil não ein! parabéns me pegou da primeira a ultima letra, (só num gostei das duas últimas ilustrações)