De ditadura conhecemos um pouco. Nossos vizinhos também. As mães da Praça de Maio, também outros Hermanos do Uruguai, Peru, Venezuela, Colômbia, Chile e outros. Nem todos tiveram a força de um Neruda a incomodar as hostes opressoras que nos igualaram, à força. Nem todos tiveram um Salvador Allende nesse enfrentamento. Carola Saavedra, chilena de nascimento, mas que mora em São Paulo há algum tempo, fala dessas opressões, de algumas delas.
Com armas sonolentas
O inventário das coisas ausentes
Toda terça-feira
Flores azuis
Paisagem com dromedário
Experimentem trocar de lugar qualquer uma das linhas; todas formarão imagens interessantes, expressivas, verossímeis. Vou me ater à primeira delas. Carola Saavedra traz já em seu sobrenome a força da tradição. E do alto de seus pouco mais de quarenta anos atinge certo grau de destaque como força motriz de novos movimentos em nossa literatura. Não falo aqui do mulherio das letras – movimento crescente e de importância ímpar, mas sim de alguém que dialoga com a tradição sem perder o frescor da novidade.
Três perfis de mulheres que vão se cosendo em água morna e que aos poucos veem suas tramas entrecortadas pela memória afetiva que transborda da efemeridade das coisas; que não se liga em efemérides; que não se apreende em qualquer ampulheta. Anna, Maike e a mulher sem nome vão nos surpreendendo pelo olhar de quem não somente narra, nem se atém ao observar atento na jaula de um narrador. Aqui a polifonia não é apenas instrumento de linguagem, é o fio da meada que reforça a trama, o cozimento.
O lado de dentro; o lado de fora; o fora no dentro; o dentro no fora. Noves fora, nada. Nonada. “… um monte de invejosos dispostos a qualquer coisa, e, infelizmente, pessoas éticas e talentosas como você acabam perdendo espaço” (Saavedra, 2018, p. 15). Esta é Anna, pelo olhar de quem narra sua história. “Tudo começou no dia em que eu decidi estudar português. Ou talvez tudo tenha começado bem antes, quando Max enfiou uma faca em minhas costas…” (idem, p. 65). Esta é Maike. “a (avó) gostava de conversar com ela, uma conversa só de palavras da avó, pedidos de vá buscar isso, vá buscar aquilo, e agora essa coisa de destino…” (idem, p. 133).
A avó, entre parêntesis, contrapõe discursos, propõe interdiscursividades de ordem cronológica, estética, metafísica. Talvez seja peça importante para o arremate do bordado que Carola tece, apetece, acontece que a narrativa, em sua densidade crescente vai entorpecendo o ouvinte/leitor, sim, ouvinte pela intimidade com que o narrador acrescenta dados e informações sobre o que está em curso. Leitor pela magia fantástica que a força da palavra impressa traz ao cérebro humano; para além da tradição de oralidade que nos humaniza.
A mulher sem nome, filha da (avó) – entre parêntesis enquanto parte estrutural da construção da escrita – tem função filogenética naquele tronco familiar. Há certa epifania em torno dessa tríade, oráculo em que o leitor vai se deleitar ao entrar em contato físico com o texto de Carola. Importa a mim o registro do avesso, da complementaridade, da ideia que unifica os dramas de mulheres que encontram na maternidade, tanto quanto na sua sexualidade, algumas chaves para penetração em um mundo próprio que invade a tessitura do texto.
Mike protege-se entre os livros de sua mãe consumista. A faca, o mar, as bicicletas – o beijo de Lupe, a mão que a puxa, que a salva. “… e a faca nada mais fizera do que abrir uma marca que já estava lá” (idem, p. 91). Sem muito “spoiler”, para ficar com uma palavra da moda, posso dizer ainda que o livro de Carola brinca, seriamente, com as especificidades do autor em meio ao que narra. Penso que nesse sentido a escolha por esse tipo de narrador permite estar-se à vontade para contar a história. Veja no diálogo abaixo como o escritor dentro do texto escrito aparece de maneira inteligente e agradável.
– Vou procurar uma editora, claro. Estive pensando, acho que vou publicar com pseudônimo, seria mais interessante, e mais de acordo com o éthos da coisa.
– Mas o romance não é seu.
– E daí? A glória também não será minha.
– Mesmo assim, Max, isso é roubo – por algum motivo eu não conseguia me conter.
– Que coisa, Maike, você está obcecada com isso, ah, minha pequena Maike, você não entende nada mesmo de arte, não é?
Tive vontade de socá-lo, talvez de enfiar, desta vez eu, uma faca em suas costas.
– Pensei num pseudônimo feminino, porque, você sabe, minha verdadeira alma é feminina. Um pseudônimo feminino e cervantino.
– Cervantino?
– sim, uma homenagem ao grande Dom Miguel de Cervantes Saavedra, gênio da literatura, aquele que reuniu num único livro, todas as possibilidades (idem, p. 119).
Anna e Mike não se conheceram. Mas a mãe de Anna conheceu a alemãzinha, sim; e estava na presença da avó que, por estar entre parêntesis boa parte da narrativa, não foi avistada por Mike que amou a Lupe, mas parece que não muito, que amou a Inês, que estava de casamento marcado. Na verdade não ficamos sabendo mesmo se Mike amou de verdade ou profundamente alguém; sequer a Max, o quase profeta que a induziu a vir ao Brasil.
Anna encena o seu drama. Descobre que o lado de dentro também é o de fora. Para os bebês o dentro é mais confortável que o fora. “… vai, vai, ali uma casinha, um rio, o espaço dentro-fora, as pedras amarelas” (idem, p. 200). Antes de voltar para casa, seu lado de dentro, COM ARMAS SONOLENTAS deve estar em sua estante. Fica a dica: para ficar por dentro sobre Carola Saavedra, se não, continue por fora.
REFERÊNCIA
SAAVEDRA, Carola. Com Armas Sonolentas. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.