A história se repete. É a mesma que lemos nos jornais e acompanhamos nos noticiários. Jovem, pobre, negro. Da periferia para a cadeia, sem o amplo direito à defesa ou ao contraditório. O contraditório aqui é só mais uma palavra bonita que não se aplica na realidade. O contraditório se torna estatística. O contraditório é mais uma vida negada. O contraditório é acreditar em meritocracia enquanto a maioria dos 622 mil presos brasileiros possuem o mesmo perfil. O mesmo perfil de Rafael Braga. Jovem, pobre, negro. Preso em 2013 durante as manifestações por portar material suspeito para produção de coquetel molotov. A história se repete. A versão da Polícia contra a versão daquele que se dizem suspeitar. E é traçando esta repetição da história, que realidade e arte se entrecortam, entrecruzam, em um encontro que rasga como a ferida aberta daquilo que se vive na pele. A arte jorra o sangue para doer, protestar, lembrar, não esquecer.
A exposição Osso no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo é um manifesto ao direito de direito de defesa de Rafael Braga. O homem aqui é alçado à símbolo, pois afinal, quantos outros como ele, jovens, pobres, negros, foram encarcerados sem direito a defesa e ao tal do contraditório? Quantos homens e mulheres são esquecidos em celas, em condições desumanas? Só lembramos destes homens e destas mulheres, quando o sangue deles mancham as manchetes dos jornais, como foi o caso no começo do ano, quando mais de 133 pessoas foram mortas durante as guerras entre facções dentro dos presídios.
Depois de perpassar por todas as esculturas, entro em uma sala cinza enquanto um vídeo toca ao fundo e leio as palavras impressas grandes que contam a sua história – e a de tantos outros:
Catador de latas, Rafael foi preso com dois recipientes de produto de limpeza. Era 20 de junho de 2013. Rio de Janeiro. Data que reuniu o maior protesto na cidade: 300 mil pessoas ocupavam as ruas. “Na investigação, os desinfetantes encontrados com o jovem foram submetidos à perícia, que constatou que os materiais apresentavam ‘mínima aptidão para funcionar como coquetel molotov’. No laudo produzido pelo esquadrão antibombas (e não pela Polícia Científica como deveria ser), não há uma única foto das garrafas”.
Com base apenas nos depoimentos dos policiais civis que o detiveram, Rafael foi condenado à pena de 5 anos de prisão e pagamento de multa. Os defensores recorreram da decisão e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a decisão, porém reduziu a pena para 4 anos e 8 meses de prisão. Os Tribunais Superiores foram acionados, mas os recursos não foram admitidos. Depois de cumprir parte de sua pena, em dezembro de 2015 conseguiu progressão para o regime aberto com uso de tornozeleira eletrônica.
“Enquanto cumpria sua pena, conseguiu um emprego como auxiliar de serviços administrativos em um escritório de advocacia. Contudo, em 12 de janeiro de 2016, a sua trajetória foi novamente interrompida: Rafael mais uma vez foi levado à prisão. Conforme relatou em todos os momentos em que foi ouvido no processo, Rafael estava a caminho da padaria no bairro periférico em que morava, quando foi abordado por policiais militares e conduzido para o quintal de uma casa”.
Depois de ser ameaçado a entregar quem “era do movimento” em um quintal, o delegado de polícia tomou por verdadeira a versão contado pelos militares e prendeu Rafael em flagrante pelo porte de 0,6 g de maconha e 6 cápsulas contendo o total de 9,3 g de cocaína. “Nenhuma diligência foi conduzida pela polícia civil antes de se levar Rafael à prisão. Na audiência de custódia, a versão de Rafael foi desacreditada e ele foi mantido encarcerado”.
“Rafael foi, então, condenado à pena de 11 anos e 3 meses de prisão e ao pagamento de multa pela prática dos crimes de tráfico de entorpecentes e associação para o tráfico. Toda prova produzida pela defesa foi ignorada”.
“Mais uma sentença condenatória fundamentada exclusivamente na palavra de policiais ouvidos no processo. Ocorre que o depoimento policial não pode servir como único elemento para a condenação. Isso porque os policiais têm inegável interesse em defender a legalidade da própria atuação seja na prisão do acusado ou na investigação, portanto têm evidente interesse em se resguardar e, assim, não são testemunhas. Também foi registrado na sentença o fato de que o local da prisão em flagrante de Rafael seria ponto de venda de drogas supostamente comandado por conhecida facção criminosa do Rio de Janeiro e, por essa razão, ele foi condenado pelo crime de associação para o tráfico.”
“Rafael não é membro de citada facção criminosa, contudo reside em comunidade por ela dominada. Rafael foi preso porque estava no local errado, no momento errado, por ter nascido no lugar errado, por residir em comunidade dominada pelo crime organizado. Por ser jovem preto, pobre e egresso do sistema prisional.”
“Rafael é símbolo do que os estudiosos chamam de ‘seletividade penal’, fenômeno que assola o sistema de justiça criminal brasileiro, jogando no falido, anacrônico e medieval sistema prisional tantos outros jovens semelhantes a Rafael: pretos, pobres, presos por tráfico de pequena quantidade de drogas.”
“Há milhares de ‘Rafaeis’ descartados por uma sociedade que não consegue se livrar de um direito penal cada vez mais amplo e violento. Tantos jovens pobres são diariamente jogados nas masmorras que são os cárceres brasileiros a fim de, supostamente, manter seguras as castas dominantes e como resposta a um anseio social por vingança punitivista. Não se pode negar: a disfuncionalidade do sistema de justiça criminal brasileiro é, afinal, funcional”.
Realizada em parceria com o Instituto de Direito ao Direito de Defesa (IDDD), a exposição conta com obras de 29 artistas brasileiros que evidenciam a violência, a distorção, o abismo em uma sociedade segregadora.
Entre estes artistas, está Rosana Paulino. “Em A Permanência das Estruturas, uma trama se costura em torno do esquema planejado para a disposição de escravos em um navio negreiro para o máximo aproveitamento do espaço. Outras imagens fazem referência às pesquisas eugênicas, que empregavam linguagem cientificista para legitimar ideologias racistas. A cena de caça representada nos azulejos portugueses dramatiza o momento da captura da presa e dá pistas da violência guardada nas imagens aparentemente neutras e objetivas que estão ao redor. O título da obra, repetido insistentemente, avisa que – ainda que mascarada sob discursos tecnicistas – a engrenagem da opressão racial segue em plena operação”.
A exposição fica em cartaz até o dia 30 de julho e a entrada é gratuita.
é revoltante a história desse jovem brasileiro que é o Rafael, simboliza uma luta constante para encobrir deficiências estruturais na nossa sociedade, essa sanha demagógica que é a luta contra o tráfico de drogas, balela das mais caras à nossa juventude mais carente, gastam-se milhões equivocados pela profunda falta de interesse/respeito em resolver os problemas profundos que temos em nosso riquíssimo país, pobre de politicos realmente envolvidos com o que, de fato interessa, que é o bem estar comum. Parabéns ao instituto Tomie Ohtake pela exposição e parabéns Marianna por nos ofertar assunto tão escondido, difícil e necessário de subir à tona nesse país de cegos.