Confesso que cheguei ao Rio de Janeiro um pouco assustado, bombardeado que somos pela mídia grotesca e selvagem que se alimenta de corpos vivos e mortos para espalhar o terror. A descida no Santo Dumont foi tranquila e aquele mundaréu de água que arrodeia a pista de pouso pareceu me acolher com a lisura com que a rainha do mar o faria caso pudesse abrir os braços para perpetuar esse laço. O mar oferecia a ressaca, como se tivesse bebido daquilo tudo em excesso; como se o tempero salgado corroesse as entranhas que deveriam fortalecer o encontro.

Confesso que a terça-feira fria do dia três do corrente enviava mensagens subcutâneas de estranhamento e a pele curtida de Mato Grosso ousou desafiar o cheiro de maresia que exalava dos olhos cariocas dos transeuntes da Cinelândia, misturava-se com manifestantes silenciosos que, da escadaria da Câmara Municipal marielavam em meio à total indiferença dos passantes. Todos pareciam dizer presente, mesmo os fora do eixo; eram solidários fora de si.

Não posso deixar de estender a confissão à maneira com a qual o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional me olhavam como se fosse eu – e boa parte do mundo, responsável pela aniquilação total de uma alegria latente que sempre esteve ao lado do bem. E o Veículo Leve sobre os Trilhos caminhava a passos lentos por um Rio que eu não conhecia, diferente daquele que me recebeu no domingo de carnaval de 1988, cheio de sonhos e planos e vinte e cinco anos de vida a menos. Cruzando para lá e para cá, as composições faziam o leva e trás com conforto e serenidade. A Praça Mauá recebia Preta Gil para a trilha sonora dos belgas. E o canarinho, ao invés de lançar mão de seu canto, chorava o choro de mais um quadriênio perdido.

Gabriel Monteiro / Agência O Globo

À véspera do jogo da copa, enquanto apresentava à Neide Silva o Real Gabinete Português de Leitura, uma família de belgas adentrava ao recinto para admirar a belezura. A estação do metrô; a Estação das Letras; a Oficina Com Vida e minha mala com roupas de meia estação; nem inverno ou verão, em uma viagem de aprendiz e certo olhar de marinheiro a escavar palavras e leituras e textos com Gizele Santos. Ela que traz em seu perfil um pedaço de Clarice que me soluça em dó menor: “A palavra é meu domínio sobre o mundo”.

E os bonecos de Dicéia, as sementes de Nancy, o carinho discreto de Ana Cristina, a poesia de Lila; o vozeirão de Vera Lúcia, a sublimação de Claudia. De Lívia o marcador de páginas com os dizeres “compartilhar afetos/compartilhar com afeto/ afetos compartilhados/ compartilhados afetos/ com afeto”. As visitas de Francisco Gregório e de Sandra Rosa. O lançamento de meus livros, o curso com Ruy Castro – vagões de um mesmo e vago trem; tudo ali, naquela estação.

NA

TABA

A

ZARABATANA

ATAZANA

A

BARATA

O poema acima, de Moduan Matos, extraído de seu livro “Palavra”, de 2011, ilustra bem o que foram aqueles dias. Nunca mais ouvirei a história de Dona Baratinha sem me lembrar de momentos ímpares como os desfrutados em meio aos que amam a leitura, que confessam sua dependência dos livros e do encantamento que provocam nas pessoas de boa vontade. Ah, “O homem que adorava caixas”, tão eu, naqueles dias.

Gizele nos colocou debaixo do braço; eu e Neide aceitamos todos os convites. Passeamos pelo seu cantinho encantado “pra Catete”, vivenciamos uma manhã maravilhosa de Poesia no Castelo, sem ratos, sem gatos, valhacoutos daquele Mia. Ninfa Parreiras, e Cristiana Seixas, em nome das quais saúdo a cada um e uma dos presentes. Vida longa para o Centro Educacional Anísio Teixeira – na semana em que Malala esteve aqui para nos ensinar um pouco do valor da educação.

E depois ainda comprar livros direto da Editora Casa Lygia Bojunga, que viagem a casa do meio, a número um e também a três, a da Lygia, com seus cantinhos abençoados pela liturgia plena do encontro com os livros. Verdadeiro cofre em que moram Manuel Bandeira, João Cabral, Fernando Pessoa e Mário Quintana. Os artistas do bairro que colorem alguns ambientes. E a vista infinita de um Rio fora do cartão postal, mas que brinda aos olhares atentos de uma santa, a Tereza.

Ainda houve espaço para homenagearmos a Eud Pestana, na presença da Flávia, Sil, Fernando, Lola, Ana Cajueiro e família, repletos de sua ausência física. Na casa de Moduan e Sil, em Nova Iguaçu, papeamos à sombra de um velho fusca, vizinho do cacho de bananas que madurava sobre seu teto, um belo cacho. E ali fizemos um mini sarau. Luiz Cantalice e Ana compartilharam um pouco de prosa e verso. De metrô até a Pavuna – agora está bem melhor do que há duas décadas, observamos outro Rio, que de janeiro a janeiro continua florindo, mesmo longe do mar, da areia da praia, que enche o coração da cidade de outros recheios que não os partilhados pelo olhar turístico pura e simplesmente.

Raduan Nassar

Na bagagem ilustres companhias literárias para a sobrevivência e manutenção do vício. “Tangolomango”, de Raimundo Carrero, “A Cordilheira”, do Galera, “Machado”, de Silviano Santiago, “O Filho Mais Velho de Deus”, de Lourenço Mutarelli, “No Seu Pescoço”, de Chimamanda, a “Obra Completa” de Raduan Nassar, “A Tristeza Extraordinária do Leopardo das Neves”, de Joca Terron, “Aquela Água Toda”, do Carrascoza, “Poemas do Amor Eterno”, de Mano Melo, “Sublunar”, de Carlito Azevedo.

E ainda “Signos – Poemas Instalações” e “Na verdade: dois em um”, de Moduan Matos; “Oscilações” e “Miscelâneas”, de Sil, de onde trago uma espécie de epitáfio para quem pretende muitas vidas:

Não vi boto cor-de-rosa

Tão pouco,

Ouvi o canto das sereias.

Mas, sei de prosa

De pescador

Que, confunde dor e reza

Em dias que não tem pesca.

Voltei para casa, lembrando a terna dita de minha avó materna que dizia sempre: “quem não vai, não vem!”. E o Rio de Janeiro, me perguntam: continua indo!

 

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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