O relógio marcava 15h00 quando uma densa nuvem de fumaça recaiu sobre a maior cidade da América Latina, transformando o dia em noite. O prenúncio do fim dos tempos, diriam muitos, ao se depararem com a massa cinzenta que recobria o céu naquela tarde de segunda-feira. As perguntas começaram a ecoar por todo o país, e logo, pelo mundo. Os olhos do planeta se voltaram para os incêndios na floresta Amazônica, originados por queimadas devido ao desmatamento ilegal. Dos assuntos mais comentados nas redes sociais, as imagens da floresta ardendo e queimando percorreram milhares e milhares de quilômetros, na velocidade da conexão global. As bases da economia tremeram diante das ameaças dos consumidores, cada vez mais conscientes e preocupados com os efeitos da crise climática ao redor do globo. O avanço predatório sobre a floresta, alegando progresso e desenvolvimento, é o reflexo do atual momento vivido pelo país. A palavra se materializa para além dos discursos e encontra um rastro de pólvora para incendiar o que estiver no caminho, atrapalhando o crescimento da nação brasileira. A antipolítica ambiental adotada pelo governo bolsonarista resultou em uma das crises mais sensíveis do meio ambiente, com amplificações e repercussões mundiais, cujo tamanho e estrago ainda é dimensionado.
A pressão sobre a floresta sempre existiu e aumenta ao menor sinal das mudanças de vento no cenário político. Para elucidar os principais fenômenos e motivos que levaram a essa situação crítica, entrevistei o pesquisador e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), Ben Hur Marimon, que atua há mais de 30 anos na floresta. “Me parece que estamos caminhando para o mesmo problema dos dois primeiros anos do governo Lula, quando o desmatamento explodiu no Brasil. Depois começou a recuar com a intervenção da Marina Silva, demitida por telefone em 2008. Os efeitos da excelente politica da Marina continuaram a fazer efeito até 2012, quando mudaram o Código Florestal, naquela manobra duvidosa capitaneada por Aldo Rabello e defendida por Kátia Abreu”, relembra e complementa: “Ou seja, os ataques ao meio ambiente não tem bandeira. Amazônia sofre com esquerda, direita, centro, alto, baixo…”.
Equilibrar a balança entre preservação e mercado é fundamental para o futuro do mundo, que sofre o impacto da crescente demanda por consumo dos seus mais de sete bilhões de habitantes. Este caminho, na avaliação de Ben Hur, passa por uma moratória do desmatamento, respeitando o direito dos produtores ao uso legal da terra, aliada a uma política de incentivo à adoção de tecnologias agropecuárias de aumento da produtividade em Mato Grosso. “Eu acredito que a única forma de sucesso na preservação ambiental é incluir o produtor nessa conta complexa. É preciso uma política positiva que favoreça o produtor que produz com responsabilidade, respeitando os limites de uso da terra e preservação ambiental. Devíamos pensar em um programa que considera os pedidos de desmatamento já realizados e dá um prazo para novos pedidos e ainda estabeleça um novo zoneamento. Mas é preciso fazer urgente algo porque as queimadas e o desmatamento ilegal estão fugindo do controle novamente e, o que me parece uma tendência de retorno aos anos 2003 e 2004”, alerta.
- Efeito de borda, ponto de inflexão, duplo aquecimento. São termos que começam a chegar ao conhecimento do público com o crescimento dos incêndios na região amazônica. Como funcionam estes fenômenos e quais são os maiores efeitos provocados por eles?
Temos na Amazônia muitas bordas, que são áreas vulneráveis, e com o agravante de uma mudança climática em curso. Na verdade, essas mudanças climáticas são dois aquecimentos em um. As bordas estão sempre no limite de uma lavoura, de uma pastagem, de uma área degradada. Quando se desmata você perde o efeito de troca de calor, de redução de calor, que é a transpiração das árvores da Amazônia. As árvores da floresta transpiram e reduzem o calor e esse efeito vai embora. O resultado? Você tem dois aquecimentos em um, que é aquecimento local somado ao aquecimento global. Perdemos também umidade do ambiente, que fica mais seco e mais quente, criando na borda um ambiente favorável onde entra mais capim, uma vegetação rasteira, que seca durante a seca, produzindo mais combustível e fica supervulnerável ao fogo. Cada ano que queima, o fogo entra um pouco mais dentro da mata, criando mais borda, avançando ainda mais para dentro da floresta. Cada queimada cria um ambiente mais seco e quente no outro ano, que vai produzir fogo, mais intenso, e que vai progredir mais ainda pra dentro da borda e assim sucessivamente nesse ciclo vicioso. Em um cálculo preliminar, que precisa ser ajustado ainda, temos em volta de 15 a 20 mil quilômetros de linhas vulneráveis de contato, de borda de floresta com pastagens, lavouras, estradas e áreas degradadas, formando grandes bordas. Nada contra estrada, que é cidadania, integração, inclusão, mas estou falando de bordas, vulneráveis ao fogo ao longo de estradas principais, vicinais, cruzando fazendas e mais fazendas. Somando estas bordas, temos esse comprimento todo de florestas vulneráveis e esse efeito de dois aquecimentos em um, que relatamos em entrevista recente pra BBC.
- Período de seca e queimadas são registrados todos os anos. O que mudou em 2019, que trouxe os olhos do mundo todo para o Brasil?
Queimadas são históricas, vem antes de 1500, muito antes de pessoas chegarem às Américas. Veio da África, da Europa, da Ásia, do mundo todo, mas o que aconteceu é que a partir de 500 anos atrás, com a chegada dos europeus isso se intensificou. O Brasil foi aberto a fogo, machado e fogo, motosserra e fogo, e agora trator e fogo, continuando esse processo. Quanto mais avança a fronteira agrícola, com as políticas de avanço que tivemos nos anos 70 e 80, mais avançam as queimadas, porque esse é o tratamento cultural e histórico do brasileiro, abrir com fogo. Passamos a motosserra, tiramos a madeira de valor econômico, aquelas madeiras grossas, árvores grandes, vendemos isso para serraria para diversos usos. Se for madeira branca, vai para indústria de laminação, se for boa para construção civil e móveis, vai para indústria madeireira tradicional. O que sobra é a floresta com madeira mais fina, ou florestas que não tem madeira de valor comercial, que se passa o correntão, a esteira e se põe fogo. Também tem o método do produtor que tem menos recurso, que simplesmente corta como pode e queima. A gente tem sempre uma cultura de queimada na época da seca, do produtor procurando aumentar sua área útil. O pecuarista, produtor de gado ou de qualquer outro tipo de cultura agropecuária, precisa de área para plantar. A cultura brasileira é essa, de queimar todo ano. Esse ano de 2019 foi mais seco e tivemos pessoas encorajadas com o momento político. Alguns produtores podem ter se sentido encorajados a abrir mais área, em um imaginário popular de que poderia haver uma anistia de desmatamento e queima, que foi dada algumas vezes na história do Brasil, inclusive recentemente. O produtor acaba pensando nisso, o produtor que está lá na fronteira e precisa de mais áreas de terras por causa da baixa produtividade de nossas pastagens devido ao uso de baixa ou nenhuma tecnologia.. Quem está na área mais consolidada não quer fogo, o fogo vai destruir o pasto dele. Temos dois Brasis, dois tipos de produtor, duas situações diferentes. As áreas consolidadas onde os produtores se matam tentando combater o fogo e aquelas frentes de borda de floresta, lá na ponta do desmatamento mesmo. Na borda de abertura com a mata amazônica, são os produtores que acabam ateando fogo para aumentar o pasto. Não sei até que ponto os discursos políticos atuais ajudaram, mas pelas informações que tivemos, algumas pessoas entenderam de forma a ficar encorajadas a queimar e abrir mais áreas, imaginando talvez que tivesse uma anistia no futuro. Isso pode ter acontecido, mas não temos como registrar isso de foram científica, não temos dados que comprovem. É o que imaginamos que pode ter acontecido, ao lado de um clima mais seco e quente do que o ano passado.
O fato é que a economia volta a crescer, o PIB volta a ter um valor positivo e as pessoas voltam a desmatar, é associado à economia.
- Quais são as verdadeiras causas da devastação dos ecossistemas amazônicos?
As verdadeiras causas são econômicas. Acredito que seja um padrão cultural antigo e de ganho, de renda mesmo. As pessoas abrem áreas para plantar e criar gado, e temos esse processo como uma cultura. É uma cultura muito agrícola, pecuária, mas a cultura é um trem em movimento, a cultura anda, muda, tem que mudar. A gente precisa mudar esse padrão cultural, melhorando a nossa produtividade agropecuária. Os nossos ganhos com a produção rural têm que ser ganhos tecnológicos, ganhos de produtividade, de tecnologia, e não novas áreas. Onde temos novas áreas disponíveis? Aqui na Amazônia. Aí é que está o problema, abrir novas terras, conquistar novos espaços. A cultura de quero um pedaço de chão para ser meu, que vai do micro, do movimento dos trabalhadores sem terra, até o médio, grande, supergrande. É o sonho de ter um pedaço de terra para chamar de seu, meu espaço. O brasileiro sonha em ser proprietário do seu espaço, seja um terreno urbano, rural, pequeno, grande e todos eles queimam, todos eles devastam, não tem tamanho, não tem medida. É uma questão econômica, basicamente, porque desmatar com fogo é muito mais barato. O problema é que é muito mais destrutivo porque sempre foge do controle.
- Existe possibilidade de reverter o avanço do desmatamento sobre a floresta?
Existe a possibilidade de diminuir este avanço explosivo floresta adentro. A possibilidade de reverter, de não ter mais desmatamento, dependeria de uma moratória. Uma moratória para a Amazônia de talvez 20 anos, nos moldes talvez da moratória da soja e do gado, como foi definida pela ala progressista do agronegócio. Mas como se coloca em prática? Como viabilizar? Primeiro, tem casos e casos para analisar, tem aquele que já começou a trabalhar sua terra, tem quem acabou de adquirir terra. Essa questão tem que ser lidada com um fórum de discussão, para definir até que ponto é possível uma moratória do desmatamento, como foi sugerido pelo Blairo Maggi, para que se tenha um investimento em tecnologia? O governo deve continuar punindo quem degrada o meio ambiente, mas também deve premiar o produtor que preserva. Isso seria muito positivo. Uma tentativa de política pública para reverter o desmatamento ilegal e as queimadas descontroladas, que poderia funcionar, é a aplicação de tecnologias para aumentar a produtividade das áreas já abertas. Ao invés de abrir novas áreas para aumentar a produção do Brasil, você aumentaria a produtividade, que é a produção por área, das áreas já existentes. As áreas que já existem, que estão produzindo mal, passariam a produzir bem. Temos três tecnologias que podem ser aplicadas: plantio direto, a integração lavoura e pecuária, e a agricultura de precisão. A agricultura de precisão pode evoluir com uso de drones, intensificação da amostragem de solo, mapeamento de solo. É uma tecnologia que pode ser aplicada e resulta em aumento na produção da pecuária e da agricultura. Particularmente, na pecuária é possível triplicar a produção de carne brasileira, sem derrubar nenhuma árvore. O produtor deveria entrar em um programa do governo federal que beneficiasse esse tipo de tecnologia, premiando o agricultor que produz melhor, que aplica tecnologia, que tiver o cadastro ambiental rural em dia, e a preservação de suas áreas, ou pelo menos um plano pra aplicar na preservação. Seria uma saída, e acho que isso que tem que ser discutido, em termos de tecnologia e ciência aplicada à produção agropecuária.
- Qual é o papel da floresta amazônica no combate à crise climática?
O papel climático da floresta é de um grande regulador de temperatura, de baixar a temperatura local, produzindo um microclima favorável. Agora, um microclima numa floresta continental, significa um clima continental regulado pela floresta, e isso produz um efeito de grande escala, na temperatura e na chuva. A regulação de chuvas é o papel mais importante da floresta amazônica. Quando o ar úmido entra no continente pelo oceano atlântico, que é a fonte de umidade dessa região, as chuvas são recicladas através da transpiração das florestas. Uma árvore adulta, grande e sadia, pode transpirar até mil litros de água por dia, e em média temos uma transpiração média anual em torno de 40/20 litros por árvore/dia na Amazônia. Para se ter uma ideia, circula pelo ar na Amazônia, todos os dias, 20 trilhões de litros de água. É mais água do que toda descarga do Rio Amazonas, que drena toda bacia amazônica e despeja diariamente, em média, 17 trilhões de litros de água no Oceano Atlântico. Pelo ar circula mais água do que por terra, e em torno de 40% ou mais dessa umidade é reciclada através da transpiração da floresta. A substituição da floresta por outro tipo de vegetação quebra esse ciclo criando um problema de dimensões continentais, com redução de chuvas no local, fora do local, fora da região e até mesmo fora da bacia amazônica. Por exemplo, temos redução de chuvas devido ao desmatamento nas regiões Centro-Oeste, Sudeste, Sul, e até em outros países como Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela. Um trabalho nosso recente mostra este efeito do desmatamento da Amazônia prejudicando as chuvas em Mato Grosso e até mesmo no Sudoeste Goiano, o que é uma ameaça real ao sucesso das safras de grãos de Mato Grosso e Goiás.
A destruição da floresta amazônica afeta o continente como um todo e afeta o padrão global de distribuição de chuvas
Quando se desregula um clima de dimensão continental, você também tem a intensificação de algumas anomalias. Quem determina o padrão de circulação global da atmosfera são os oceanos, são os grandes fatores que dirigem essa distribuição. Mas agora temos um efeito de dimensões continentais com essa destruição da floresta, o que influencia no clima de todo o continente.
- Na sua percepção, qual é o maior entrave dos países que abrigam a floresta Amazônica, e principalmente, do Brasil, no que se refere à preservação ambiental?
Essa mudança influencia o agronegócio sim, podendo acarretar prejuízos e temos que pensar nisso também. O desmatamento e as queimadas são dirigidos por forças econômicas e contra forças econômicas, o mais eficiente são outras forças econômicas. Temos a chance de ter forças econômicas positivas do setor progressista do agronegócio brigando com forças econômicas da velha guarda, ou seja, o lado progressista do agronegócio lutando contra o lado tradicional do agronegócio. Acho que isso é bastante positivo, porque deste jogo de forças podemos criar uma política de incentivo a adoção de novas tecnologias para aumentar produtividade e com isso diminuir a necessidade de abertura de novas áreas, junto com a questão da conservação da biodiversidade. Só o apelo da biodiversidade não funciona, não está funcionando, e acredito que não vai funcionar, agora, o apelo da economia, esse funciona.
[…] Fico feliz que a branquitude esteja começando a ficar assustada, fico feliz mesmo, porquê isso é coisa que denunciamos desde 1500, e só agora somos ouvidos, porquê só agora gente branca está começando a morrer também. Espero que agora comecem a acordar para pensar outras formas de se organizar, que não seja só ficar sentado no seu próprio privilégio. Já que tem tanto privilégio, que tem voz e espaço, que use isso para alguma coisa e não só ficar assustado porque o céu virou noite em determinado dia“. […]