Receber bem as pessoas é dadivoso. Os japoneses mantinham uma tradição de acolher os andarilhos que, a exemplo do poeta Bashô, grande mestre do haicai, peregrinavam por longos períodos pelo país em busca de conhecimento, de equilíbrio, ou da melhor paisagem onde traduziam em ideogramas, suas experiências de vida e a percepção poética advinda da observação da natureza e suas estações. Eles eram recebidos com o coração aberto, o que demonstrava respeito pelo estrangeiro, aquele que vem de fora. Pressupõe-se que o peregrino esteja em condição de fragilidade diante da natureza e suas condições hostis. Então era comum darem abrigo e alimento aos andarilhos, respeitosamente.
Ora, digo isso por que a questão da migração está na pauta de vários países que hoje, em tempos de intolerância, relutam em receber pessoas de outros lugares que por alguma razão experimentam o êxodo, migrando em grande quantidade para outros lugares onde possam ter oportunidade de desenvolver suas vidas. As grandes correntes migratórias são provocadas pela guerra, pela escassez ou esgotamento das condições ambientais, ou ainda por desastres naturais de grandes proporções. É o caso dos haitianos que desembarcaram no Brasil ao fugirem das condições desumanas ou inumanas após o terremoto que abalou e devastou o país em 2010.
A recepção aos haitianos no Brasil passa por vários problemas, que vão desde o preconceito étnico, passando pelas visões xenófobas que representam o medo do outro, do estrangeiro, seja pela preservação corporativa no trabalho ou atitudes de reserva de mercado, enfim são muitos os problemas, no Acre, em São Paulo e em Cuiabá. Por aqui já vimos, divulgado pela imprensa local, algumas histórias de intolerância, brigas, provocações e até tentativas de homicídio.
Em contrapartida, um movimento provocado por artistas e produtores culturais, como Glória Albuês, Mário Friedlander, Luis Segadas, Jackeline Silva, Professora Antonieta, Lúcia Palma, e vários outros militantes da cultura, O Haiti é Aqui, como forma de integrar e receber e compartilhar vivências, trocas culturais, celebrações através da arte e principalmente da música. Aliás, os haitianos cuiabanos são incríveis, pois carregam uma alegria que é contagiante. Com o uso de ritmos eletrônicos e do rap, cantam a saudade da terra natal, cantam o desejo de conquistar mentes e corações do lugar escolhido. No caso, o Brasil do futebol, do carnaval, da música, para construir aqui o seu novo lugar, sua morada, sua casa também. A cultura representa essa possibilidade mais que qualquer outra forma de estabelecer elos de convívio e de amizade entre os povos. Abolir as fronteiras já vem sendo cantado em prosa e verso desde o advento do movimento hippie na década de 1960 quando os ideais de um humanismo fraternal, solidário e universal alimentavam os sonhos de uma juventude libertária.
Além da questão humanitária alguns artistas haitianos começaram a chamar a atenção em Cuiabá pela qualidade de seus trabalhos. Reporto-me, no particular, ao trabalho que tive mais oportunidade de compartilhar em show e em uma entrevista na rádio Assembléia com o Asid-Adult-man, um rapper que vem mostrando uma qualidade poética comovente e convincente.
Asid Adult-man é o nome artístico de Esdras Altidor. Um grande sonhador que resiste em idealizar um futuro melhor desde o Haiti. Parece que tudo se intensificou a partir da tragédia dolorosa do grande terremoto que devastou o país.
Iniciou seus primeiros passos na carreira artística em sua terra de origem na cidade de Môle Saint Nicolas ao norte do Haiti, onde já se dedicava a música e ao estilo Rap, sempre buscando ser reconhecido como um cantor profissional.
É um autêntico cultivador de boas relações, privilegiando fazer amigos como uma forma de demonstrar de sua gentileza e generosidade com as pessoas. Nisso reside um processo de troca e compartilhamento com muitas dessas pessoas que vem conhecendo e criando vínculos ao longo de sua vida.
Formou-se no 2º Grau e cursou 2 anos de Gestão Econômica no Haiti, mas não pode dar continuidade porque depois do terremoto acompanhou sua família na saída do país, passando por alguns países como Chile, Argentina antes de chegar ao Brasil em 2013. Também fez alguns cursos aqui, como Auxiliar Administrativo e Eletricista, mas não exerceu nenhuma dessas atividades.
Em Cuiabá se encantou com o calor e acolhimento das pessoas e conheceu muita gente boa como ele gosta de expressar, que o incentivam a nunca desistir dos seus objetivos e que, aos poucos e com muito esforço, tem conquistado seu espaço e reconhecimento. A primeira apresentação em Cuiabá foi em 2014 com a banda God Singers, na UFMT, em um evento para comemorar a última batalha no Haiti antes da independência, “La Bataille de Vertière”. Em parceria com outros artistas haitianos de muito talento, tem tentado trazer a cultura musical do país caribenho para a cidade.
Outro marco importante em sua carreira artística foi à participação no documentário “Fierté dês Nègres” em 2015, e também na encenação do Alto da Paixão de Cristo em 2016. Participou de outros eventos na UFMT, como no Dia da Consciência Negra, Saraus Internos e na abertura da exposição Eqüevo, no Museu de Arte e Cultura Popular na Universidade Federal de Mato Grosso, entre outros.
O Rapper haitiano também tem músicas autorais gravadas, dando destaque para “Come back baby” e mais atualmente “Revolução” que tem um clip em fase de finalização. Fundou a produtora Dream Production HT que tem como objetivo principal incentivar e dar oportunidade aos artistas haitianos na cidade, promovendo iniciativas culturais para os imigrantes se expressarem, com apoio colaborativo de pessoas que se identificam com essa causa e querem ajudar a difundir a cultura e desmistificar o preconceito com essa população. Com a Copa do Mundo teve um grande aumento do número de haitianos que vieram para Cuiabá e região.
Asid tem feito parceria com rappers da cidade. Tem tocado pelas casas de espetáculos da cidade, como Malcon Pub e Bar do Bigode, além dos eventos produzidos pela Dream Production, como a festa Revolução, realizada no Bar Reveurs que é o point mais tradicional da população de haitianos na cidade, localizado no Bairro Planalto.
Asid Asult-man manda o recado claro e reto: “ Que os sonhos de uma realidade melhor nunca se percam e que a dedicação e esforço sejam favoráveis e reconhecidos.”
Que assim seja!