Por Tulio Paniago Vilela*
Moro numa rua que acaba num córrego. Por isso, basicamente, só transita por essa rua quem nela mora. Então – motivados pelo medo – os vizinhos se reuniram e botaram um portão na única entrada. Sob a perspectiva deles, uma rua que tem algum fim não tem finalidade alguma. Todavia, logo após o primeiro portão, como num efeito dominó, fecharam praticamente todas as outras ruas que se encerram no córrego. Agora, além de continuar inseguro, o bairro se tornou mais fechado, tal qual as pessoas.
Nunca mais se ouviu o som da buzina do picolezeiro, tampouco o cheiro desagradável – embora continue sendo um cheiro – do caminhão de lixo. De tão restrita que se tornou, não se vê mais os bichanos de rua, que, por sua natureza selvagem, preferem ambientes mais livres. Os pássaros sobrevoam, mas já não assentam nessas árvores que parecem possuir os olhos das pessoas que creem possuí-las. Em pouco tempo, a rua perdeu todo o cheiro, sabor, contato, som e até mesmo as cores parecem mais desbotadas.
Desde então, tudo acontece do portão pra fora. Carteiros, coletores de lixo e pedestres nos observam por de trás das grades, como num zoológico humano a céu aberto. Cada rua, uma cela. O curioso é que os hábitos são tão redundantemente habituais que um observador desatento poderia nos confundir com animais enjaulados, aqueles que perdem praticamente toda a pulsão de vida quando privados da liberdade e passam a existir pelo simples motivo de não ser possível inexistir.
Enfim, essa é a deprimente história da rua que acaba dos dois lados. Como no conto de Guimarães Rosa, tenho a impressão de estar na terceira margem do rio. Porém, tudo isso pouco tem a ver com o que está por vir. E quando digo ‘pouco’ poderia ser ‘nada’. É que o continuar deste texto é tão sem coesão quanto a rua em que moro. E no que diz respeito à coerência, lembra meus vizinhos. Portanto, no que está por vir – mas já foi -, o ab(surdo) h(ouve).
O dia amanheceu como se fosse tarde. Então acordei como se não tivesse dormido e fui botar o lixo pra fora, mas não pra fora de casa, e sim pra fora da rua, porque caminhões de lixo não entram mais. Tinha pressa não lembro de que. (Tenho questionado minha sanidade mental com frequência, mas a frequência com que a questiono me faz crer que esteja são). Nesse dia, talvez domingo, o portão pouco fora aberto, se é que foi alguma vez. E os moradores da rua se dividiram: os que não eram deserto, eram escassez. E eu escapei depressa rumo à saída, como um rio comprimido pelas margens tentando encontrar vazão. Mas, sabe-se lá por que, não me desfiz do lixo que botaria pra fora, como se fosse uma obrigação anterior à obrigação de fugir.
Em segundos que demoraram horas, após percorrer correndo alguns metros que mais pareciam quilômetros, já diante da lixeira – porém ainda do lado de dentro do portão -, notei que minhas mãos estavam leves. Todo o lixo havia se esvaído e o que carregava eram apenas sacos vazios. Ao olhar pra trás, me assustei com a quantidade espalhada pela rua, pois, apesar de muito pesado, aparentava ser bem menos quando comprimido nos sacos. Mas agora estava por toda parte (tinha tomado inclusive as calçadas) e não fazia sentido algum, era como se as sacolas tivessem explodido. Então, num surto de lucidez, busquei explicações. Talvez o movimentar dos braços, enquanto corria, tenha forçado demais o plástico, que acabou cedendo e arremessando lixo por todas as direções.
Foi um breve surto de consciência. Logo em seguida, felizmente, todo o sentido dos acontecimentos – tal qual o lixo – se esvaiu. Estava confortavelmente imerso na insanidade indescritível do instante. Vi toda a rua infestada, mas não no sentido habitual da palavra (até porque já não havia mais nada de habitual ali), estava infestada no sentido de estar em festa. E, por ser orgânico, o lixo deveras tinha mais vida que o vazio no olhar daquelas pessoas mecânicas, que a tudo observavam, buscando algum sentido que ali jamais encontrariam.
Afinal, que sentido há na repentina debandada de cães e gatos libertinos que vieram de todas as partes para se deliciar com o lixo? Os animais corriam endiabrados por todos os lados, revirando tudo, lambuzando os pelos e abusando de tanta fartura. Mas não eram os únicos, também se via os considerados mais desprezíveis. Estes pobres coitados – ratos e baratas – percorriam as ruas assustando as já tão amedrontadas pessoas, que, num repentino ato de desespero, se amontaram junto ao portão, e este, por sua vez, sucumbiu à força do medo que motivou sua construção e, finalmente, também foi ao chão.
De imediato, todo cheiro ao redor invadiu a rua e um delicioso sabor de chuva inundou minhas narinas. Entretanto, não chovia, pelo contrário, o sol ardia e brilhava tanto que o iluminar das cores ofuscava a própria visão. E pelos poros foi possível sentir o brotar de cada gota de suor, que refrescava a pele ao entrar em contato com a brisa fresca, que, carinhosamente, arrepiava pelo por pelo do corpo. Ao fundo, se ouvia todo tipo de barulho, ruído e grito. Em meio ao caos, durante alguns momentos, tudo foi cheiro, sabor, sons, contato e cores.
*Tulio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros, está em Cuiabá desde 2010