Terra e rio se confundem nessa Baixada Cuiabana. Portos de saudosas partidas entre as muitas idas e vindas de tantos passageiros. “Leva guaraná ralado quando for me visitar! Peixes diversos, farofa de banana, arroz Maria Isabel, maxixe”. “Um docinho de caju seu moço?” Falas e risos fáceis invadem cozinhas fartas de tanta história oral e bastante cheiro verde para temperar. No quintal, uns passos de siriri e cururu sob o batuque ancestral do mocho e as cordas rascantes da viola de cocho. Cantoria em dia de festa de santo é sagrado por aqui. O rio Cuiabá é testemunha desse movimento. Rio abaixo e rio acima. São muitos os padroeiros nessa procissão de santos, ou melhor, profusão, levados em rituais religiosos embalados por fartos banquetes.
Poconé é um desses municípios que estão à margem do rio Cuiabá. De lá vem o ritmo chamado de lambadão, que há mais de uma década, desde 1997, vem embalando muitos bailes e festas de santos nesse pedaço de mundo. Já há algum tempo vem chamando a atenção de olhares de fora. Segundo o que apuramos, na visão de Hermano Vianna e de vários músicos da cena, o lambadão tem origem no ponto de fusão entre a lambada paraense (trazida pelos garimpeiros que foram para o Pará, nos anos 70 e 80), e o rasqueado cuiabano, que tem em sua origem elementos do siriri e do cururu e da polka paraguaia. Alguns pioneiros arriscam dizer que o samba faz parte dessa fusão.
O poconeano Chico Gil, um dos pioneiros dessa criação mato-grossense, se tornou lenda na história do lambadão, teve músicas suas gravadas por praticamente todos os grupos que o sucederam após sua trágica morte. É um ícone. Faz parte desse imaginário que permeia toda a história da arte, o elemento trágico, povoando o imaginário das pessoas e criando aspectos lendários. Logo no início da criação do lambadão, o Chico Gil morreu tragicamente num acidente de carro, quando voltava de uma de suas excursões (incursões) pelo interior do estado de Mato Grosso. Já, então, famoso, ele foi um mestre na arte de compor os primeiros sucessos do lambadão. Sem dúvida, ainda é seu maior representante. Chico Gil foi garimpeiro, pedreiro, lendário pai de 22 filhos (13 legítimos, assumidos ou sabidos), bom pai e manhoso na arte de compor canções e letras de rápido sucesso. Dizem que vivia pesquisando os causos populares e linguajar apropriado para seu público, de classes sociais menos favorecidas.
Quando MT era um só, antes da divisão do estado em 1978, a região sul, que tinha Campo Grande como centro, abrigava os músicos que conseguiram atingir um público mais amplo, conquistando São Paulo e o Brasil, como Tetê Espíndola e o Lírio Selvagem, Geraldo Espíndola, Paulo Simões, Almir Sater, Alzira Espíndola e outros artistas. Essa turma conseguiu furar as barreiras regionais e levar seu som para os grandes centros urbanos, quando tiveram alcance nacional mesmo dentro de estruturas convencionais, através de modelos de negócios baseado em direitos autorais e concentração excessiva do controle dos modos de produção, execução pública através de sistemas de radiodifusão e distribuição física com altos investimentos nos lançamentos.
A cadeia produtiva do lambadão envolve desde o processo de criação, com os compositores que não vivem de direito autoral, pois é um mercado extremamente informal; os músicos que gravam as canções e fazem shows (de onde tiram seu sustento); os produtores de eventos, principalmente em casas de shows e festas de santos; os estúdios que gravam os CDs e DVDs; reprodutores não autorizados; e os camelôs que comercializam as obras reproduzidas sem autorização.
Sobreviver só da música é um desejo, ou sonho, de quase todos os artistas que conheço, e no lambadão não é diferente. Mas a realidade é bem dura. Poucos conseguem esse feito. Os grupos mais famosos, que conseguem maior projeção e que se estruturam melhor, investindo na carreira, é que conseguem. Bandas mais profissionalizadas, como a ERRE Som, Escort Som, que são mais requisitadas para shows, ou as novidades, como Os Garotos, banda sensação do momento, conseguem faturar mais. Gisa Barros, produtora em Várzea Grande, paga cachês que variam de 500 a 700 reais por shows de uma hora, praticamente toda semana. Gisa Barros afirma ainda que acontecem de 4 a 6 shows, todo sábado, só em Várzea Grande, com público médio de 1.500 a 3 mil pessoas. Apesar desse mercado aquecido muitos músicos precisam trabalhar em outras atividades para se sustentar, são também pedreiros, mecânicos, frentistas em postos de gasolina, trabalhadores de frigoríficos, garimpo, etc.
Como é um mercado informal, quem mais fatura com o lambadão são os reprodutores de CDs e DVDs não autorizados que contam com a rede de camelôs que se espalham por todo o estado. Vendem muito, grandes e pequenos camelôs. Outra fonte de renda para as principais bandas são as festas de santos que acontecem durante todo o ano na Baixada Cuiabana. A banda Escort Som, por exemplo, é campeã em participação nessas festas, fecha previamente de 60 a 80 apresentações por ano.
QUE MÚSICA É ESSA?
O nome Lambadão foi dito pela primeira vez, em 1997, pela boca do cantor e compositor Zé Moraes, da banda Estrela Dalva, contemporâneo do Chico Gil, numa resposta a uma indagação de alguém: que tipo de música é essa? Ele respondeu meio que forçadamente, sem pretensão de alcunhar o fenômeno: Lambadão! Estava dito e escrito, o lambadão veio para ficar. Tocava então a música “Vou Dançar”. A dança nunca mais parou.
O Procurador Mauro, integrante do grupo de lambadão Os Ciganos, formado em 1998 com seus irmãos Wilson e Cleberson, vem desde o final dos anos 1990 participando ativamente da construção de uma cena, seja tocando, se apresentando nos palcos, seja na mobilização de parceiros para incursões políticas na cena cultural de Mato Grosso.
A música já fazia parte dessa família. Zé Cigano (o pai), Mané Cigano e Dito Cigano (os tios) tocavam rasqueado e sertanejo na região de Chapada dos Guimarães. Começaram a se dedicar aos instrumentos musicais na infância, culminando com a formação da banda Os Ciganos. Tocavam, no início, em aniversários, casamentos, bares e até hoje tocam nas festas de Santos na Baixada Cuiabana. Aliás, essas Festas de Santos têm como tradição convidar bandas de rasqueado e lambadão para animar, o que não deixa de ser curioso pelo teor das letras, principalmente do lambadão, que têm uma pegada mais sensual e profana. Existe muito humor e um jeito espontaneamente escrachado no falar cuiabano, e isso se reflete nas letras, principalmente do lambadão, a exemplo dessa que se segue e que se tornou um hit da cena.
Tô dependurado, o sol tá quente. Eu não posso voar, eu sou da lua cheia. Noite escura, da solidão do mar. Eu sou eterno meu bem, vem pro meu mundo também. Eu sou da escuridão e você é do dia. Eu não sou seu pai, você também não é minha tia. Se quiser fazer amor, vem de noite e esquece o dia. Porque eu sou o Batman do amor.
Ou esta outra (ambas da Banda Erre Som):
É MU
Êta cabra frouxo danado pra chorar. Anda desiludido querendo se matar. O ciúme é o fato e você não quer falar. Desilusões fingidas, uma mulher bandida e tu enchendo a cara. Eu vou ter que te falar, tá todo mundo vendo e você só bebendo. É caso confirmado: O seu problema é Múúúito chifre na cabeça.
Mauro fala sobre essa característica de Cuiabá, identificada, entre outros, pela historiadora e professora Elizabeth Madureira, que relata que, desde o final do século 19, pesquisadores de fora que aqui vieram observaram que Cuiabá era o único lugar onde tinham visto as pessoas misturarem o prazer social, beber, dançar e jogar baralho com o ritual religioso, que na época já trazia a musicalidade siriri e do cururu, depois o rasqueado e agora o lambadão que domina as festas de santos.
Mauro fala também sobre o momento em que o lambadão começou a se disseminar mais do que o rasqueado na região. Seu irmão Wilson tinha uma banquinha de camelô, em 1992, quando tiveram contato com essa música de periferia. Ele e seu irmão vinham percebendo, numa banca ao lado, de um senhor de Poconé, o enorme movimento que bandas como Escort Som, Big Som, Estrela Dalva, Wilson Luis e Chico Gil provocavam. Ele afirma que “eram um sucesso de venda, muita gente procurava, quando ainda não tinha o nome de lambadão, era ainda lambada ou rasqueadão, eram chamadas de bandas de baile”. Mauro continua seu passeio pela memória: “em 1994, o rasqueado explodiu, com Roberto Lucialdo, Pescuma, Henrique e Claudinho e, também, nesse bolo, Os Maninhos, que surgiram como uma banda de rasqueado. Íamos sempre nos bailes em Santo Antonio, Bonsucesso, Fazenda Nova em Chapada dos Guimarães, Coxipó do Ouro, Deacil, onde os Maninhos tocavam bailes inesquecíveis. Isso foi fundamental para a formação e entusiasmo do grupo Os Ciganos”.
Segundo Andrezinho 10, o Imperador, hoje são mais de 60 bandas mapeadas pela associação, outros contabilizam 80 e até 100 bandas, distribuídas pelos treze municípios da Baixada Cuiabana e mais, curiosamente, um grupo na Bolívia e um em Aragarças, que fica na fronteira com a mato-grossense Barra do Garças, que divide Mato Grosso e Goiás. As fronteiras estão se alargando, mas isso não é novidade, o Nordeste brasileiro já havia importado o lambadão. Uma das primeiras bandas a gravar uma coletânea (bailão) foi a Styllo Pop Som, de Rosário do Oeste, que estourou em 1999. O CD da banda era uma febre aqui em Cuiabá (de 1999 a 2001) e foi parar no Nordeste, onde virou mania também (o alcance da pirataria é imprevisível).
No Nordeste, coincidentemente, havia uma banda, com nome registrado, que se chamava Stillo também, e passou a tocar as músicas de lambadão da homônima de Rosário do Oeste, o que criou uma confusão danada. Compraram uma ou outra música, mas era difícil até de localizar os autores das músicas para adquirirem o direito. Foi nesse período que o lambadão extrapolou, transpondo barreiras, mas também perdendo o controle, que, na realidade, jamais existiu. A música “Toque toque DJ”, por exemplo, que ficou mais conhecida na cena cuiabana com Os Maninhos, estourou com a Styllo Pop Som e foi gravada também pela Ivete Sangalo.
FÁBRICA DE HITS
O uso de tecnologia para a difusão e distribuição a partir de downloads gratuitos é muito comum como estratégia de, praticamente, todas as bandas. Além disso, aparentemente ninguém se incomoda de ser pirateado, na realidade existe uma permissividade e, dá para arriscar, até certo estímulo velado a essa prática, que faz com que as bandas fiquem muito mais conhecidas e permite medir o grau do sucesso de cada uma. A pirataria é também uma fábrica de hits, que nunca param de surgir. Segundo Procurador Mauro, “a pirataria existe, é uma coisa velada, fora da lei, mas todo mundo finge que não vê. Essa prática influenciou diretamente no surgimento dessa cena no estado”.
Procurador Mauro afirma, ainda, que “hoje todas as bandas têm condições de gravar, têm acesso a estúdios. Daquele tempo, de quando começamos, para os dias de hoje, as coisas se tornaram mais fáceis pelo acesso à tecnologia, existem muitos estúdios e muitas dessas bandas têm seu próprio estúdio”. Wilson, seu irmão e parceiro de banda, emenda: ”Com 600 reais, 700 reais, dá para gravar e sair com um CD pronto, com 15 faixas, gravado meio que ao vivo”.
Uma das características dos CDs de lambadão é que, geralmente, não têm música por faixa, o CD roda direto, como um baile ao vivo, as músicas se sucedendo num continuum. Mas isso não é regra; adquiri CDs com 20, até 22 músicas, praticamente sem separação, mas existe uma linha de corte que propicia apresentar faixa a faixa, numa rádio, por exemplo. São muitas bandas novas surgindo e lançando constantemente novos CDs. Ouvi, informalmente, de um garoto que passava pelo camelódromo, a visão, ingênua, mas carregada de convicção, que “hoje em dia, as pessoas estão preferindo comprar DVDs de lambadão, por que tem a imagem, não é?”. Walter, camelô e vocalista, concorda:”Tá saindo bastante DVDs”.
Os sucessos do lambadão tocam em rádios comunitárias de Cuiabá e Várzea Grande, pois foi feito um trabalho de convencimento corpo a corpo, segundo Andrezinho. “Fomos de porta em porta. Levamos os CDs e conseguimos fazer parcerias que foram muito importantes”. Atualmente duas rádios mantém uma programação diária dirigida ao público que consome lambadão, a Rádio ABC Shalom, no bairro Novo Terceiro em Cuiabá e a Estação VG, no bairro Areia Vermelha, em Várzea Grande É bastante comum ouvir lambadão também nas festas de classe média. Porém, são marginalizados quando falamos em mídias tradicionais, não encontram espaços nas rádios AMs e FMs e muito menos nas TVs. Mas o lambadão encontrou seu próprio espaço, furou as barreiras impostas com sua sedução que encanta um público cada vez maior. No espaço de três a quatro dias, esse
post no You-Tube saltou de 150 mil para 258 mil acessos.
Os números de acesso aos posts de lambadão na internet, principalmente no YouTube, atingem marcas de 50 mil, 90 mil, 200 mil views. Isso demonstra a alta procura pelo lambadão, o que configura um processo de ampliação desse público de forma crescente e constante, atingindo muito fortemente as periferias (muito comum também, como já presenciei, ouvirmos lambadão em churrascos, festinhas, encontros de amigos e conhecidos de classe média) de cidades como Cáceres, Poconé, Várzea Grande e Cuiabá, que podemos configurar como o sustentáculo do lambadão em Mato Grosso. Outras cidades também são atingidas por esse autêntico fenômeno musical de terras matogrossenses, Pontes e Lacerda, Diamantino, Comodoro, Vila Bela, Jangada, Alto Paraguai, Rosário do Oeste, Nobres.
ECONOMIA INFORMAL
A informalidade é a tônica dos negócios que envolvem a cena do lambadão em Mato Grosso. Isso leva naturalmente à falta de informações, principalmente pela falta de uma fonte de dados. Pode implicar também em atividades consideradas ilegais, como é o comércio informal, o que leva a um silêncio deliberado de quem faz parte desse circuito. Não temos, por exemplo, como mensurar a quantidade de produtos como CDs e DVDs comercializados. Mas as estimativas são altas, se tomarmos como base os cálculos de cada banda ou produtor. Procurador Mauro e Wilson, dos Ciganos, por exemplo, avaliam terem atingido, ao longo de mais de doze anos de carreira e 18 coletâneas de CDs, a marca de 500 mil a 800 mil discos vendidos.
A banda Art Sentimentos, que está há cinco anos na ativa, tem como vocalista e “dono” da banda Walter Costa, 26 anos, camelô e grande entusiasta da cena lambadão. Ele afirma categoricamente que CDs e DVDs são ótimos para divulgar as bandas, uma espécie de cartão de visitas. Faturam mesmo é com shows, onde ganham cachês de 600 a 800 reais. Ao ser indagado sobre essa produção não autorizada de CDs, regateia, abaixa a voz, balbucia: “Quem faz…? São algumas pessoas por aí, algumas gráficas”.
Diz que, além de suas próprias músicas, costumam gravar sucessos que já estão nas paradas com outros artistas como Bruno e Marrone, Leonardo e, mais recentemente, gravaram o 6º Volume de sua banda, capitaneado pelo hit absoluto da temporada, que estourou no Youtube, “Minha mulher não deixa não”, que virou febre também entre os lambadeiros, sendo gravada por praticamente todas as bandas do estado. Walter diz que, “com essa música gravada saltamos de 10 CDs em média, para uma vendagem de 30 a 40 CDs, por dia”. Um autêntico banquete antropofágico. Devoro tudo que não é meu.
LAMBADÃO PÉ DE FESTA
Como já dito, o ganho principal das bandas é com apresentações ao vivo. Existe um mercado de casas de shows, também crescente; Cabana do DUDU, Central Show, Retirão do CPA, Salão do Marreco, Mistura da Música, Clube do Zé Pimenta, Salão da Dona Ana, Salão Do Gonçalo, todos são locais onde o lambadão acontece, principalmente, através do eletro-ritmo, que é o lambadão em sua versão reduzida, com o teclado substituindo praticamente uma banda inteira (bandas basicamente formadas por teclado, guitarra e vocal) e facilitando a inserção de uma maneira mais barata. Além disso, há casamentos, festas de aniversário e as festas de santo, onde reside realmente a força do lambadão.
Outra versão do lambadão é a lambadinha, criada pela banda Escort Som. É um jeito de dançar diferente, é o lambadão em sua versão romântica. Ainda está restrita à Várzea Grande, onde estão as melhores casas de shows, e ainda não atingiu o coração do interior do estado.
Outra característica interessante desta cena, centrada nas exibições ao vivo, é que as bandas desenvolveram um tipo de espetáculo coreográfico, produzido com elementos cênicos e figurinos vistosos, entre o futurismo e o kitsch. O palco fica bastante movimentado com um corpo de dançarinos e atores representando os personagens das músicas como um clip, ao vivo, chifrudos literalmente carregando os cornos na cabeça, máscara do Batman, com capa e tudo. O público fica completamente extasiado.
É isso! De palco em palco, o lambadão matogrossense segue sua sina, com um público fiel e cativo, modelando novos rumos e negócios.