Por Augusto Krebs*
Há quem diga, não só uma pessoa, na realidade existe já um grande coro around the world que afirma em afirmações que não se afirmam, que vivemos um novo período que não pode ser denominado enquanto moderno. Segundo estas pessoas, o tom dos manifestos é passado, e há de ser esquecido ou até mesmo relembrado mas não veementemente, pois não ressoa no discurso atual do mundo ocidental esta postura radical.
Há quem cante alegremente, há quem não cante por ter simplesmente como nem mesmo falar, mas entre as várias facetas da expressão humana que dependem da voz encontramos os gritos, de guerra, de ordem, etc. Num emocionante golpe de ar, as cadeiras vêm tomando espaço com seu grito forte que reclama espaço e reconhecimento, este último sempre negado segundo elas através dos séculos, pois espaço todos temos no mundo. O leitor há de convir que com Física não se brinca porque é como a própria Web, se lá está é porque é real, verdadeiro e acima de qualquer sentença lógica bem acabada que teste sua validade. Temos de voltar para as nossas companheiras.
Elas ocupam seus espaços na sociedade atual, espaço este construído não só através dos tempos mas pelas mãos também de artífices, marceneiros, operários nas fábricas, garantindo durante muito tempo o conforto de nossos traseiros. Temos de lembrar que antes que nos revoltemos com qualquer sorte de reclamação por parte destas amigas do homem, talvez mais amigas que o próprio cão, a anatomia humana conferiu certa fragilidade a esta parte do corpo encarregada dos dejetos, poderíamos estar entregues a mentes como a de Vlad, O Empalador, e arriscando vidas nos entregando ao ato de sentar em estacas. Nada tão mórbido é o discurso destas peças de madeira, pedem reconhecimento, respeito, gentilezas, “Gentileza gera gentileza”, diz uma que reside conosco aqui em casa.
São 13:58 da tarde e estou sentado em uma outra companheira velha de guerra, rosa, rosa como os sonhos das menininhas induzidos pelas grandes corporações e indústrias que ditam nossa moda e comportamento. Em meio ao caos e despreparo da população para receber este tipo de reflexão no rotineiro “corre-corre”, existe discussão, quilos de discussão que poderiam preencher os anos luz de Cuiabá às margens do nosso sistema solar. Fiquei deveras chocado também com os argumentos, retórica e, inclusive, ataques de algumas cadeiras em relação a outras, cena essa, infelizmente, muito recorrente. Aqui em minha residência existe um movimento de repulsa dos bancos de madeira para com as cadeiras industrializadas de plástico “Assento de verdade é feito de madeira, esculpido a mão, na base do machado e do facão, só assim pra aguentar as intempéries da vida de ser cadeira. Meu criador era francês, esse sim entendia a coisa toda, tenho sobrenome estrangeiro, pertenço a uma linha sucessória de cadeiras, não sou dessas cadeiras que ninguém sabe quem fez, às vezes é um funcionário que passou um mês de experiência na fábrica e nunca mais voltou. Tenho berço!”, “Essa meninada foi tudo criada de qualquer jeito por aí, chega achando que dá conta de alguma coisa, nunca passam de dois meses”, essas são algumas afirmações, entre tantas me chamou atenção esta “Evidentemente tenho ascendência que remonta aos tempos de Moisés, pode prestar atenção, tenho traço bem específico daquela região”, de fato, olhei para aquelas estrias no material dela, existem sim traços orientais, mas algum desvio genético deve ter originado este ser em questão, lá pros litorais japoneses, não no meio do tão antigo Oriente. Acho que nem os cataclismas bíblicos devem ter notícia desta cadeira.
Mas, ah!, realmente são poucas as que sabem se fazer serem sentadas, aquelas que parecem ter sido feitas especialmente para a curvatura defeituosa que alimentamos durante a infância e puberdade, aquelas as quais são quase mordomos, e encontramos desta espécie no fim do mundo, em muitas casas na periferia, outras em palácios, prédios públicos, até perdermos a conta. Me chama a atenção, umas são feitas na Tailândia e se adaptam tão facilmente ao “Setzen Sie sich” em solo germânico, outras se dão tão facilmente ao destrato de não precisarem ouvir “Excuse me“, só por estarem em solo anglo-saxão, pouco se importam se são tratadas às favas, contanto que estejam na Europa. Vale lembrar, leitora ou leitor, estas acabarão, porque como nós, não são feitas para serem eternas, inclusive, o ser humano ainda não descobriu o motor que moverá o ato de viver, este ato sequencial de pensar para a potência infinita.
Elas também tem suas organizações internacionais, e tentam impedir o abuso por parte de nós humanos “Cadeiras de todo o mundo, uni-vos! Não podemos nos sujeitar a este reinado predominantemente humano, há quem nos use para se sustentar em pé (…)”, conta uma outra cadeira que divide simpaticamente a existência comigo aqui em casa, esta mesma conta também que anda acontecendo uma discussão muito acirrada entre as cadeiras no mundo inteiro a respeito da arte performática e intervenções urbano-artísticas realizadas por nós seres humanos, conta esta nobre senhora cadeira que no último congresso mundial de cadeiras na qual esteve presente, presenciou a fala de uma grande e importante cadeira, da qual não recorda nome “As coisas tem ultrapassado o limite do bom senso, trata-se de um caso de apropriação cultural! Não se mover é uma característica inalienável de seres inanimados como nós cadeiras, e tantos outros seres que habitam o mundo, inanimar é verbo que define nossa experiência de mundo, não podemos permitir este tipo de ensejo por parte de humanos que dizem fazer arte se apropriando indevidamente disso para fazer dinheiro, enquanto que nós somos esquecidas nas áreas das casas, sem proteção, sem cuidados, sem atenção (…)”, “Mas se não se movem, como a senhora esteve por lá?”, pergunto, e ela sem expressão, não responde. Como muitas coisas, mais uma questão que permanece em aberto, mais um mistério para a coleção da vida.
Me aventurando neste universo tão novo, e por isso tão rico, vou descobrindo existências de grupos radicais também, que encontram na prática da autodestruição a forma de atentar contra a vida humana no planeta, como fizeram os famigerados kamikazes, ou como o fazem hoje os grupos extremistas com injeções da indústria armamentista, promovendo atentados terroristas, com seus homens-bomba. Grande parte deste grupo é constituído por cadeiras mais velhas, que se entregam num ato de redenção, para a causa urgente, ocasionando o mais variado tipo de acidentes, fazendo nobres bundas, gordas, magras, de qualquer natureza encontrarem o tão duro chão. Descobrimos uma integrante destes grupos infiltrada aqui em casa quando estes dias atrás minha irmã foi vítima de um atentado desses, confiando no zelo desmesurado destes seres entregou as nádegas às dores, resultado do incidente.
Sei que com o passar dos dias, e do descobrimento de várias problemáticas tenho tentado uma posição fraterna e solidária em relação a estas camaradas, advogando uma que em determinada situação na semana passada se encontrava em um canto diferente da sala, quando minha irmã toda cheia de si pergunta para nossa mãe o que ela, a cadeira, fazia ali, sendo que se encontrava em outro lugar. Leitoras e leitores, minhxs amigxs não vi a hora em que parti para cima de minha irmã questionando “Quem é você?”, como sendo próprio da natureza de minha irmã ela retrucou “O quê?”, e repeti, complementando “Quem você acha que é pra deslegitimar o direito de ir e vir da cadeira?”. Pronto, o caos se fez em nosso lar, mas brevemente, ainda bem.
Caso exista um interesse em conhecer outros casos semelhantes registrados pela literatura ocidental, a respeito de outros seres, temos a existência de “O Terceiro Tira” relato documentado por Flann O’ Brien
Prossigo o meu caminhar, sobre pés não muito grandes, pertencentes a um corpo não muito esbelto, em nada delgado, deixando este pequeno apanhado do que tem ocupado meus singelos pensamentos nos últimos e recentes tempos. A vida é curiosa mesmo, muita coisa não tem resposta, cientistas vem e vão, e ainda não consigo entender porque me simpatizo com elas, as cadeiras, acho que deve ser porque com muita frequência me sinto uma também.
*Augusto Krebs, 24 anos, chapadense, cidadão do cosmo.