O relógio marcava meio dia e cinco minutos quando chegou ao ponto de ônibus a tempo de vê-lo cruzar a esquina com a luz do sol refletida no azul metálico e desgastado. Respirou fundo para ajustar os batimentos cardíacos pela corrida até ali. Todos os dias era a mesma rotina: almoçar as 11h para pegar o ônibus das 12h até o centro da cidade e de lá pegar outro ônibus até o jornal. Mas era de praxe que o coletivo se atrasasse uns cinco minutos ou se adiantasse uns cinco minutos. Quando passava antes, era certo que o perderia. Todos os dias da semana durante oito meses, chegou ao ponto de ônibus no mesmo horário, meio dia e cinco minutos. Cravados. Como se os seus relógios biológico, físico e mental a encaminhassem para o seu destino com uma hora pré-marcada, agendada para que todos os acontecimentos da sua vida girassem em torno daquele horário específico que brilhava no seu relógio de pulso.

A porta do ônibus abria-se e lá dentro assentos livres separavam as pessoas que não se olhavam, não se reconheciam. Os rostos voltados para a rua, talvez faziam o que ela também fazia: imaginar histórias para todos os que cruzavam o seu caminho. Este traz um olhar profundo marcado por cicatrizes invisíveis que revelam a perda de um grande amor. Esta sorri por que acabou de cruzar com um rosto que reconheceu de um sonho na noite anterior. Esta outra arruma os cabelos para encontrar o ex-namorado, este vai ao mesmo trabalho todos os dias há 40 anos, esta se divorcia do marido, este conta as horas que faltam para se aposentar e curtir sua cadeira de fios na calçada em frente à rua de sua casa.

Todos carregavam histórias que não a pertenciam, mas momentaneamente a preenchiam para fazê-la esquecer que os pés queimavam na sapatilha frágil sobre o chão de metal que absorvia rapidamente o calor do asfalto. Aquele calor que queimava até os neurônios. “Por isso que as pessoas aqui são assim”. E ela nunca entendia o que significa ser assim ou assado. O calor é só o calor, não derrete neurônios, do mesmo jeito que o frio não os congela.

O trajeto da ida permitia a imaginação romanceada. O da volta não. Saia às 18h e corria até a avenida na esperança de chegar ao ponto de ônibus antes de todos os outros trabalhadores. Os ônibus deixando apenas o rastro do vento e as pessoas correndo para pegarem o seu destino. Todos amontoados dentro da caixa de metal sob rodas, os corpos apertados, enjaulados, como aqueles caminhões de porcos que são levados para o abate, sem saber do cruel desfecho que os aguardam, seguem inanimados, lado a lado, tentando não se tocar, não se olhar. Apenas seguem. Inertes.

Foi em um desses momentos que seu olhar se fixou em uma senhora, de uns 60 anos, negra, com uma aparência humilde em seu vestido colorido com estampa de flor, os cabelos bem alinhados puxados para trás, amarrados com um elástico, as mãos entrelaçadas em cima do colo, como se estivesse rezando durante todo o trajeto. Seus olhos estavam fechados e em todo o tempo que a contemplou, ela permaneceu do mesmo jeito, sem se mover.

Segurou reticente as lágrimas nos olhos. Não podia chorar, não tinha esse direito. Era jovem, branca, de classe média, privilegiada, com um emprego de meio período que provavelmente pagava mais do que o dela em período integral.

E aquela senhora ali, com a sua mão em reza, talvez rogando para que o destino abrande as dores que carrega. Ainda assim, ela segue forte. Aceita o fardo que a vida lhe impõe, seja ele qual for e vive. Ou sobrevive. Pensou que ela poderia muito bem sustentar uma família inteira, como acontece em muitos lares. A matriarca, seja a mãe ou a avó, mantendo toda a estrutura de um lar para prover um futuro minimamente decente aos seus filhos e netos. Para que esses filhos e netos possam romper com esta lógica perversa do sistema que não permite chances iguais. Essa sociedade que aplaude empresários lobistas e políticos corruptos e segrega faxineiros, catadores de lixo, cobradores de ônibus, motoristas, balconistas, pessoas em situação de rua.

Suas lágrimas foram silenciadas pela revolta, engolidas pelo seu estômago ácido. A senhora continuou tranquila, seus olhos fechados. O seu ponto chegou. Desceu com todos aqueles pensamentos desanuviando como a fumaça dos veículos que se dissipava em dióxido de carbono no ar e andou até a sua casa, pensando no quanto era egoísta e no quanto o mundo é injusto.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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