Luiz Renato de Souza Pinto*
Vinte anos não são vinte dias, todos sabemos. Louvar um evento que amadurece as entranhas do fazer artístico é tarefa de incomum qualidade nesse mundo em que vivemos. Pois o Palco Giratório está em festa. E nossa cidade soube cantar esses parabéns ao longo desses vinte e três dias em que recebeu quase trinta espetáculos que compõem o cenário das artes cênicas em nosso país. Este país massacrado pela falta de políticas públicas em todos os setores; em que artistas reclamam da inexistência de suporte fiscal para suas produções. Esse país que não tem verbas sequer para abastecer aos hospitais com o que há de mais básico para a existência humana. É o nosso país, inimaginável em qualquer ribalta ou picadeiro.
Pude assistir a oito desses espetáculos, sendo um deles já comentado por mim aqui mesmo neste site, Os Mequetrefes, dos Parlapatões, acontecido no teatro do Arsenal no dia 16/05. Os demais foram fruto de minhas leituras de cena publicadas em Parágrafo Cerrado, blogue que pretende virar site e que já é referência para comentários acerca das representações cênicas em nossa capital. São eles “O Quadro de Todos Juntos” (MG), “Ruína de Anjos” (BA), “Women´s” (SC), “A Beira de…” (CE), “Andarilhos das Estrelas” (MT), “Caliban – A Tempestade de Augusto Boal” (RS) e “Palafita” (CE). Cada um me tocou de uma maneira e é sobre essa magia que fomenta e amplia público que gostaria de falar um pouco.
O grupo mineiro Pigmaleão trouxe para o palco o que há de mais profundo em nossa psique, ou seja, traços nocivos de um inconsciente que revela o grotesco que envolve nossa animalidade. Histórias ouvidas e vistas em hospitais psiquiátricos que, à luz dos estratagemas observatórios de Michel Foucault, transformaram-se em máscaras da condição humana a exorcizar nos espectadores o outro lado do espelho que estava intacto minutos antes da representação. O aprofundamento dessas questões nos vêm à tona pela Experiência Subterrânea que, de Santa Catarina, aprofunda as temáticas do grupo mineiro, sobretudo apresentando a necrofilia como troféu dessa doentia condição humana que nos revolve por dentro.
A Outra Companhia de Salvador invadiu as ruas de nosso centro histórico anunciando a reabertura do Cine Bandeirantes, que era uma balela, e nos envolveu em um caos urbano de que não damos conta, com a (in) acessibilidade de nossas ruas e calçadas para contar a história de personagens representativas de nosso perturbado século XXI.
Do Ceará nos sopraram bons ventos, com aquele cheiro de uma água verde que banha seu litoral. Silvia Moura nos convidou para um banquete ao redor de uma mesa na qual nos foi servido o prato principal: seu corpo e alma que convidavam para um passeio lúdico pelo universo mitológico do qual jorrava o leite mais puro e arrebatador. Sobre as palafitas de carne do grupo Fuzuê, a dança da areia e do mar nesse jogo de vai-e-vem embalava nossos desejos discretos de conhecer a magia das águas do mar. “Palafita” é um espetáculo construído com uma dramaturgia minimalista na qual os corpos de dois atores se misturam a dois baldes de areia e nada mais. Nada mais foi necessário para se discutir o que foi proposto. Nada faltou na representação sangrenta da falta de espaço para o outro na sociedade inglória fundada com a concentração de poder e renda nas mãos de poucos para que o circo montado não repartisse uma migalha a mais do que o necessário do próprio pão sovado pelo grande irmão.
A rua, como o palco italiano, serve de espaço para qualquer artista. A poesia do povo em contradição à agitação insensata dos corpos que insistem no ir e vir garantido pela Constituição. E à luz dessa constipação coletiva, uma procissão de jovens marcou aquela manhã que começou nublada, no dia16/05 e que pelas dez da madrugada já esturricava com o sol a pino a cabeça dos relutantes seguidores do Tibanaré. Entre os seguidores daquele intrépido cortejo cênico os atuadores gaúchos humildemente saudavam aos andarilhos matutinos da companhia cuiabana. E as trocas simbólicas aconteciam ao longo do trajeto.
Mas Caliban – A Tempestade de Augusto Boal, em minha opinião, roubou a cena, mesmo com uma plateia muito diminuta pela importância do grupo que há 39 anos sacode a cultura brasileira e impregna de maneira decisiva a arte de rua com seus conceitos mirabolantes revisitados a cada obra. A Orla do Porto, revitalizada e mais parecida com Alice no país das maravilhas do que com o Minhocão do Pari pode receber um espetáculo a altura do que se convenciona chamar pelos políticos de plantão como um espetáculo digno dos seus (quase) 300 anos.
E pensar que os dadaístas há cem anos pregavam o final da arte, que Walter Benjamin no final dos anos trinta anunciava o fim do romance, a invisibilidade do narrador. Ainda bem que a arte, qual fênix, renasce das cinzas e você que agora me lê tem a oportunidade de fazer a diferença, primeiramente em sua vida, para que depois o possa fazer na vida dos demais, a começar pelos que moram em sua casa, os que se avizinham, os amigos, os colegas de trabalho e assim, quem sabe, o mundo todo.
VÁ AO TEATRO; LEIA BONS LIVROS; ASSISTA A FILMES QUE DESPERTEM A SUA VONTADE DE MUDAR; INDIGNE-SE, SEMPRE QUE POSSÍVEL E CERTIFIQUE-SE DE QUE A BANDEIRA PELA QUAL ESTÁ LUTANDO SERVIRÁ TAMBÉM AO SEU PRÓXIMO, MESMO QUE DISTANTE!
*Luiz Renato de Souza Pinto, poeta, escritor, ator, professor.