A matéria “E o tempo levou ‘E o vento levou’” estava entre as mais lidas na tarde dessa quarta-feira, 10 de junho de 2020, no site do jornal Folha de S. Paulo. Dodô Azevedo traz um debate importante sobre a necessidade de contextualização para fins de reparação histórica. A decisão da HBO em retirar do catálogo de streaming o clássico do cinema “…E o vento levou”, motivada pelo pedido do roteirista do filme “12 anos de escravidão”, John Ridley, ganhou manchetes e impulsionou a discussão sobre como lidar com a arte e estereótipos que precisam ser combatidos. Havia lido o artigo e me deparei com uma publicação da escritora negra Joice Berth em seu Instagram, que falava sobre John Ridley e fui atrás do texto na íntegra.
Cena do filme …E o vento levou, retirado do catálogo da HBO após pedidos por contextualização com fins de reparação histórica

No Los Angeles Times, Ridley faz um apelo sincero sobre o filme e sua glorificação e veneração de um imaginário racista. “Como cineasta, entendo que os filmes costumam ser retratos instantâneos de momentos da história. Eles refletem não apenas as atitudes e opiniões dos envolvidos em sua criação, mas também as da cultura predominante. Como tal, mesmo os filmes mais bem-intencionados podem decepcionar na forma como representam comunidades marginalizadas. “…E o vento levou”, no entanto, é seu próprio problema. Não é apenas decepcionante em relação à representação. É um filme que glorifica o Sul dos EUA do século XIX. É um filme que, quando não ignora os horrores da escravidão, faz uma pausa apenas para perpetuar alguns dos estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor.”

“É um filme que, como parte da narrativa da “Causa Perdida”, romantiza a Confederação de uma maneira que continua a legitimar a noção de que o movimento secessionista era algo mais, ou melhor, ou mais nobre do que era – uma insurreição sangrenta para manter o “direito” de possuir, vender e comprar seres humanos”, continua.

Não é censura o que John Ridley defende, ele adianta. É preciso haver uma reparação histórica com a devida contextualização de conteúdos como esse. O diretor sugere que a HBO reapresente o filme com avisos, e juntamente com outros filmes que forneçam uma imagem mais ampla do que realmente era a escravidão e os confederados, ou mesmo documentários com histórias de diferentes perspectivas, em vez de meramente as que reforçam esse imaginário.

Bastidores do filme …E o vento levou, retirado do catálogo da HBO após pedidos por contextualização com fins de reparação histórica

Um pedido que pode ser considerado exagerado por alguns, mas Ridley alerta: “Esse pedido é pouco comparado ao seu filho lhe perguntar se pode ir aos protestos contra a intolerância racial ou perguntar o que você fez para mudar o mundo”, completa. A sugestão de Ridley se estende aos outros serviços de streaming, para que olhem suas bibliotecas e façam um esforço para separar a programação que falta em representatividade e é flagrante em sua demonização.

Joice Berth escreveu que o artigo de Ridley problematiza a romantização do movimento secessionista, que oculta a luta política dos supremacistas brancos pela permanência da comercialização das pessoas negras em regime escravocrata. “O cinema foi e ainda é um dos pilares da desvalorização negra e propagação do racismo através de imagens de controle e a atitude da HBO é mais do que assertiva, é justa, porque manter essas imagens sem a crítica que deve ser feita é se recusar a romper com um dos tentáculos mais perversos do racismo”, evidencia.

Hattie Mcdaniel, que ganhou o Oscar no papel da empregada doméstica em “…E o vento levou”, não foi escalada para o papel somente por conta do seu potencial ou talento. Dodô Azevedo, explica, no texto que cito no início, que na época existia o “Código Hays”, um sistema de autorregulação dos estúdios para “restabelecer a boa imagem de Hollywood”, após a enxurrada de escândalos dos anos vinte. O “Código Hays” proibia romances interraciais e obrigava negros a interpretarem apenas empregados domésticos e motoristas.

Cena do filme …E o vento levou, retirado do catálogo da HBO após pedidos por contextualização com fins de reparação histórica

Sobre isso, Joice Berth arremata: “Os símbolos são tão potentes quanto os chicotes colonial. Mesmo esse filme trazendo a primeira mulher negra a vencer o Oscar de melhor atriz coadjuvante, não apaga todo o discurso que inclusive vitimou essa mulher ao esquecimento pós-Oscar. É o que eu sempre questiono, até onde a branquitude está disposta a recuar dos privilégios em prol de vidas negras? Todo mundo indignado com a polícia, mas não o bastante para derrubar símbolos de perpetuação imagética da supremacia branca. Por séculos a negritude conviveu e convive com o escárnio e violência em torno de sua imagem. Mas quando isso é trazido à tona, chamam de censura ou de revisionismo, mesmo a empresa avisando que não é permanente a retirada. Ações antirracistas sempre vão passar por diversas ações de reparação histórica, inclusive no cinema”, conclui a escritora. 

Para além do necessário debate sobre como a questão racial é retratada no cinema (ontem, hoje e amanhã), precisamos nos comprometer com a reparação histórica, que não pode mais ser adiada indefinidamente.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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