Saquei da prateleira o livro amarelo, capa vistosa, e a mulher negra com tranças azuis veio para casa. Não era uma mulher, era um livro: o conceito de representação voltou a me acompanhar, embora a sensação fosse de que nunca estivesse ausente. Ah, Chartier! O contato com uma linguagem distinta, mas repleta de elementos similares de nossa cultura não dava conta da origem da escrita. Nigéria, Haiti, Brasil. A de (s) colonialidade se faz de muitos pontos de vista nessa grande teia. E no frigir dos ovos,

“Nnamabia era igualzinho à minha mãe, com a pele clara cor de mel, olhos grandes e uma boca generosa que se curvava perfeitamente. Quando minha mãe nos levava ao mercado, os feirantes gritavam: “Ei! Senhora, por que desperdiçou sua pele clara num menino e deixou a menina tão escura? O que um menino está fazendo com tanta beleza?” (ADICHIE, 2017, p. 12).

Chimamanda Ngozi Adichie

Hoje, compreendo um pouco sobre interseccionalidade, tanto quanto a origem (pernóstica) do conceito de racismo reverso, e o que está por trás dessa aberração. Sinto-me mais preparado para enfrentar as salas de aula onde meninos e meninas de baixa renda nos fitam com questionamentos bem dentro, no sangue dos olhos, em uma sondagem psicológica sobre nossos pertencimentos a este ou aquele ponto de vista. “Nkem suspira, passa a mão no cabelo. Ele está grosso demais, velho demais. Ela planejava retocar o relaxante no dia seguinte, e fazer um penteado deixando o pescoço definido, do jeito que Obiora gosta” (Idem, p. 34-5).

O livro chama-se “No seu Pescoço”. Foi bater e levar. Tive que comprar outros. E assim o fiz até ler três romances, dois teóricos sobre feminismo negro e o de contos, do qual ora falo. Chimamanda é um grande nome de autoria feminina nas letras contemporâneas. O cabelo parece ser a pedra de toque do estranhamento, no conjunto de suas obras. O contraste acentuado demarca territórios e as marcas do pescoço aparecem em toda a obra, aliás, em vários de seus livros, elemento estrutural das narrativas.

“… vocês fizeram as pazes, fizeram amor e passaram a mão nos cabelos um do outro, o dele macio e louro como a palha do milho que cresce balançando ao vento, o seu escuro e elástico como o forro de um travesseiro. Ele pegou sol demais e sua pele ficou da cor de uma melancia madura, e você beijou suas costas antes de passar hidratante nelas.

Aquilo que se enroscava ao redor do seu pescoço, que quase sufocava você antes de dormir, começou a afrouxar, a se soltar” (idem, p. 136).

Interessa-me essa questão étnica por razões óbvias. Sou professor de escola pública, lido com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Não há como fechar os olhos para o que se prostra a nossa frente. Como pai de menino e de menina, também sinto a obrigação de observar o comportamento de ambos com relação a tudo. Em “Para educar crianças feministas”, Chimamanda atenta para o fato de que “O trabalho de cuidar da casa e dos filhos não deveria ter gênero, e o que devemos perguntar não é se uma mulher consegue “dar conta de tudo”, e sim qual é a melhor maneira de apoiar o casal em suas duplas obrigações no emprego e no lar” (ADICHIE, 2017, p. 18).

As lições são dadas de maneira objetiva, sem rodeios. “Então, em vez de ensinar Chizalum a ser agradável, ensine-a a ser honesta. E bondosa. E corajosa. Incentive-a a expor suas opiniões, a dizer o que realmente sente, a falar com sinceridade” (idem, p. 49). Mas creio que nem todos se achegam aos conceitos de quem escreve arrancando os músculos de nossos ossos. Outra de suas obras teóricas é “Sejamos Todos Feministas” – livro pequeno, sessenta e quatro páginas, formato de bolso que enche o peito de um sentimento de mudança.

Aqui a autora se refere à indiferença de algumas mulheres pelas questões de gênero. “O melhor exemplo de feminista que conheço é o meu irmão Kene, que também é um jovem legal, bonito e muito másculo” (ADICHIE, 2015, p. 49). Assisti a alguns vídeos da escritora na plataforma Youtube e saboreei cada palavra. Ela, que ouviu de outras bocas, ser negra apenas em solo americano. Em seu país era mulher – substantivo simples, sem a necessidade de adjetivação.

Os romances

“Hibisco Roxo” tem uma capa chamativa. Arroxeada, lógico. A narrativa denuncia práticas culturais que refletem aspectos do colonialismo. “Os maridos vêm visitá-las de Mercedes e Lexus todo fim de semana, compram estéreos, livros e geladeiras para elas e, quando elas se formam, eles é que vão ser os donos delas e de seus diplomas” (ADICHIE, 2011, p. 84). Lembro-me aqui de Saramago e de uma de suas máximas, a de colonizar o outro, ao querer que seu pensar se iguale ao dele.

As similaridades com a cultura brasileira não se restringem a elementos distópicos, embora o quantitativo seja abundante. A dureza de tal realidade se manifesta em um “continuum” que nos provoca náuseas, se não vejamos: “ – E quando é que nós vamos protestar, ê? Quando os soldados virarem professores e os alunos tiverem de ir às aulas com armas apontadas para a cabeça?” (Idem, p. 235).

As lutas pela independência do Biafra, a fragmentação da Nigéria e demais movimentos que olham do sul para o norte justificam essa irmandade. O velho mundo está ruindo, sim, o que não significa que contrapomos essa decadência com organização social. “Meio Sol Amarelo” é um romance que trata dessas e outras questões.  Pareço ler Graciliano Ramos quando vejo isto: “A tia apertou o passo, e o som das sandálias fazendo chape-chape ecoou pela rua silenciosa” (ADICHIE, 2008, p.12). E que estou na terra de Caymmi, Caetano Veloso e Ivete Sangalo, ao me deparar com “Seu abadá era bordado com fios de ouro, em volta da gola. Ela olhou o pescoço dele, viu os rolos de banha e imaginou-o remexendo neles, na hora do banho” (idem, p. 45). Ou que estamos imersos em uma solução aquosa de difícil respiração: “… os britânicos criaram os chefes locais, os mandatários, porque o governo indireto saía bem mais barato à coroa” (idem, p. 140).

O salto do governo Obama para o de Trump tem grande repercussão entre os acontecimentos da atualidade, sem dúvida. Do livro “Americanah” trago uma pérola para encerrar esta crônica; depois dela não vejo necessidade de dizer mais nada. “… talvez esteja na hora de esquecer a palavra ‘racista’. Encontrar uma nova. Como Síndrome do distúrbio Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome: leve, mediana e aguda” (ADICHIE, 2014, p. 341). Chimamanda é mulher, negra e africana. Escreve como gente grande. Tem muito a dizer para quem está interessado no aprendizado e encontra na humildade o espaço de trocas, de conhecimento. Já passou da hora de fazermos essas leituras. Vai começar por onde?

 

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio Sol Amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

________________________. Hibisco Roxo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

________________________.  Americanah. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

________________________. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

________________________.  Para educar crianças feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

________________________. NO seu pescoço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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