Começo o ano de 2021 com a literatura baiana me acompanhando. A visita ao Recôncavo e a Salvador se faz acompanhada pelas “Terras do Sem Fim”, de Jorge Amado. A expansão e concentração de propriedade rural na costa sul do estado é pano de fundo para o coronelismo exacerbado em sua versão cacaueira. Por trás do chocolate há um gosto amargo dessa homogeneização cultural e colonialismo autocrata que mais do que tudo maltrata a cultura do outro, seja este quem for.
Esse autoritarismo não é fruto apenas da ditadura Vargas, ainda que esta o tenha patrocinado. Ao longo da década de 1930, a exploração diamantífera deixava profundas cicatrizes na região da Chapada Diamantina, local em que outro baiano busca referências para construir uma saga demiúrgica de proporções metafísicas profundas. Itamar Vieira Júnior inscreve no painel da literatura brasileira contemporânea seu “Torto arado” como ferramenta de uma linguagem áspera a se espaçar pelas trilhas narrativas.
FIO DE CORTE: a lâmina afiada da faca de Donana traz o silêncio para o plano de fundo da página. A fazenda Caxangá retalhada tem no objeto subtraído a força do estigma de uma cultura. O filho do mato com as onças. A mãe que o protege. A história de uma família que se forma no entorno de embornais que se locupletam da força de trabalho de um povo. Aqui me lembro de Guimarães Rosa com seu sertão, e mais ainda, com o seu Iauaretê.
Da força da palavra, o arado se entorta pelos contornos da linguagem que brota do silêncio de Belonísia, uma das narradoras. Ela, irmã de Bibiana, filhas de Salu e Zeca Chapéu Grande, netas de Donana em cujos
pensamentos, Fusco havia se tornado uma onça, pedia para que tivéssemos cuidado. Nos convidada a caminhar pelas veredas por onde iríamos buscar meu pai que, haviam dito, estava dormindo aos pés de um jatobá ao lado da onça mansa que o cão havia se tornado. Sabíamos que o nosso pai estava na roça, trabalhando todos os dias, então as coisas que a minha avó falava não faziam sentido. Mesmo assim, minha mãe pedia que a acompanhássemos, que vigiássemos para que não lhe sucedesse nenhum acidente ou se perdesse em meio à mata. (Idem, p. 28).
A narrativa vai contrapondo elementos distintos de religiosidade irmãs. O toque de um pífano representa a acolhida aos santos, ao passo que o som dos atabaques corporifica os encantados. Novamente me recordo de Guimarães Rosa, para quem não existem mortos, mas encantados. E desse encantamento se nutre a escrita da obra. Quando Salu espeta minhocas nos anzóis para a pescaria, as crianças enxergam a imagem de São Sebastião, flechado de quase morte, em analogia com o estado das minhocas oferecidas em sacrifício, mas são reprimidas pela mãe.
TORTO ARADO: o arado velho do pai; a faca enfiada em uma pedra no leito do rio traz para o universo a imagem de excalibur. O cabo de marfim encetando a lâmina que produziu cortes profundos na língua de Bibiana e mutilou a de Belonísia, que recupera pela escrita a força do verbo. Bom Jesus da Lapa – terra de Salu, a mãe. O pai, nascido pela Chapada, o avô materno, José Alcino, das cercanias do Recôncavo, que veio atrás da pedra. Do feitiço da pedra, de seu brilho que apenas encontra no torto arado uma “procissão de lembranças”.
O chapéu grande – de José para a viúva, Donana, e desta para o filho Zeca, em cujo velório ocorre certo “enxame de sentimentos”, dando a ideia da colmeia, a força de uma comunidade. Água Negra transforma-se em fazenda. Há pares e duplos ao longo da história. Bibiana/Belonísia; Crispina/Crispiniana; e os encantados Cosme e Damião. E o fantasma do capitão do mato assombrando aos comunitários.
Sabíamos que a fazenda existia, pelo menos, desde a chegada de Damião, o pioneiro dos trabalhadores, durante a seca de 1932. A família Peixoto havia herdado terras das sesmarias. Essas coisas nem Deus sabe explicar como aconteceram, mas Severo diz de uma forma que o povo fica atento, indo de casa em casa, da escola aos caminhos para a roça. (idem, p. 176).
RIO DE SANGUE: a terceira parte me lembra novamente “Terras do Sem Fim” – terra adubada com sangue. Itamar não reescreve Jorge Amado, nem parte dele. Apenas demonstra o caráter cíclico da história na expansão inconsequente do território, na formação do latifúndio, a legalização da grilagem de terras, o cartorialismo dos meios de produção, ao invés de uma lógica de ocupação racional e com respeito às comunidades primitivas. Pretos sendo mortos no campo e na cidade.
Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o homem afogado. (idem, p. 207).
VIDAS NEGRAS IMPORTAM e os capítulos 10 e 11 dessa terceira parte fazem uso incisivo dessa tomada de consciência ao inverter o foco narrativo para a segunda pessoa. Ora para Bibiana (capítulo 10), ora para Belonísia (capítulo 11), narradoras da primeira e segunda parte do romance. Para Bibiana, a entidade que narra diz que
Você olha
Você atravessa (p. 241)
Você responde
Você afaga
Você se desloca (p. 242)
Você retornou para a escola (243)
Você apenas abria um caminho (244).
A sequência de imperativos parece encostar à parede a personagem/narradora, fazendo de suas ações a força motriz dessa mudança. E logo após, o mesmo procedimento para com Belonísia:
Você não conseguiu
Você andava
Você parava
Você se calar (245)
Você recorda seu pai arrastando arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a terra em linhas tortas. (247).
A gradação com que se dirige à irmã mais nova, a que teve um arado torto entre os dentes, se difere da anterior. Para Bibiana, os verbos predominantemente no presente encaminham a mulher para a volta à escola, sabendo que era o caminho para a mudança. Para Belonísia, a negativa (não conseguiu) é seguida por verbos no pretérito, antes de emborcar no presente simples do arrasto do arado da linguagem, também pesado, que rasga a sonoridade da palavra impronunciável.
A assunção dos quilombolas, ao custo do sangue que adubou a terra, metonimicamente representa os abusos em todo o país, mas não há resquícios de ódio nas vozes do romance, apenas a informação estilística de que “Se prepararam para a guerra, como os coronéis fizeram no passado pelo controle dos garimpos. A diferença é que agora o conflito era pelo direito de morar”. (idem, p. 256). A gente percebe que está diante de um clássico não pelos prêmios que ganha, ou pela presença na lista dos mais vendidos. A percepção vem da força da palavra, da expressão de uma cultura que habita dentro da gente. (Ou não!).
REFERÊNCIA