Por Thales de Mendonça*

Fruto de uma realidade calcada nos escapismos mentais para subjugar os horrores políticos e sociais enfrentados na época, René Laloux – cineasta francês – carregava em suas memórias imagens de horror que enfeitava com uma beleza cativa ao seu próprio olhar. Artista de reconhecimento mundial e muito agraciado na França, dois anos após seu falecimento, Laloux enfrenta agora a mesma realidade que sua arte – a animação 2D – o ostracismo.

88cbd6113552784ce7a81097f4db9760Nascido em 1929 em Paris, Laloux estudara pintura na faculdade de artes. Desde criança, acreditava que fadas protegiam nossos berços após o nascimento e que uma fada o visitara, lhe concedendo um vislumbre de seu destino no mundo. Após graduar-se, trabalhou por um tempo em uma agência de marketing antes de conseguir um emprego no instituto psiquiátrico Cour Cheverny, no qual daria os primeiros passos em seu mundo de fantasia e horror.

Sua escassa carreira – em trinta anos Laloux fizera apenas três filmes e nove curtas, todos com orçamentos baixíssimos – começara justamente neste Instituto, onde durante os experimentos artísticos que realizava com os internos, Laloux deu origem ao seu primeiro trabalho de reconhecimento nacional. “Os dentes do macaco”, gravado em 1960, baseava-se não só em um roteiro escrito pelos internos do instituto, como preservava seus desenhos originais. Para Laloux, o mais importante na animação era não perder a essência do artista. Seus filmes, gravados em stop-motion com recortes de papel em frente às câmeras, exigiam paciência para sua execução e resultavam em animações extremamente limitadas, mas preservavam os desenhos em suas dinâmicas originais.

No curta, um homem vai ao dentista e tem todos os seus dentes arrancados para serem vendidos, o que inicia uma terrível jornada em sua vida, tudo aos olhos de um enorme macaco negro.

“OS DENTES DO MACACO” LES DENTS DU SINGE (1960) – RENÉ LALOUX

O sucesso de seu filme o levara a conhecer Roland Topor, artista francês criador do “Movimento Pânico” junto com os artistas Alejandro Jodorowski e Fernando Arrabal. O movimento, que se baseava em uma visão caótica e surreal das artes, sintonizava com muitas das ideias artísticas de Laloux. Não demorara muito até que ele e Topor criassem seu primeiro curta metragem juntos. “Os tempos Mortos” fora lançado em 1964 e está entre os melhores trabalhos do diretor.

A animação, que misturava cenas de filmes com desenhos estáticos de Topor, narra a natureza humana enquanto reflete sobre a obsessão do homem com a morte. Em nove minutos, viajamos entre realidade e sonho para um mundo onde os horrores da guerra e da opressão se materializam em imagens melancólicas e repletas de beleza. A ausência de uma trama que o guie faz de “Os tempos Mortos” o mais onírico de seus trabalhos. Nos transportamos para a mente de Laloux e nos enfeitiçamos no primeiro instante por sua atmosfera inebriante.

“OS TEMPOS MORTOS” LES  TEMPS MORTS (1964) – RENÉ LALOUX & ROLAND TOPOR

A crítica positiva e a aceitação do estilo único de Laloux, junto aos pitorescos e sensíveis desenhos de Topor, gerariam os outros dois maiores trabalhos do cineasta. Um ano após “Os tempos Mortos”, os dois artistas se reuniram novamente para lançar o politizado “Os caracóis”. A história do pequeno fazendeiro que só consegue fazer suas plantações crescerem às custas de suas próprias lágrimas, e as tem consumidas por gigantes caracóis, trazia uma linearidade cruel que se tornaria familiar aos trabalhos de Laloux.

“OS CARACÓIS” LES ESCARGOTS (1965) – RENÉ LALOUX

No fim do curta, a cenoura e os coelhos evocam a ideia de um ciclo constante de sofrimento para aquele que é oprimido. A luta de Laloux contra a ordem e o totalitarismo começava a tomar forma. Para ele, unidade era sinônimo de paz, mas paz era sinônimo de sofrimento e dor para o indivíduo que cresce no caos e precisa do mesmo para criar.  O conhecimento e o sacrifício que exigem a paz é nocivo ao ritmo e ao sistema caótico que todos compartilham, segundo o cineasta. Seu filme mais premiado e mundialmente conhecido, “Planeta Fantástico” de 1973, reforçaria esta ideia.

Em “Planeta Fantástico”, os Draags – uma raça extremamente evoluída cujo maior passatempo é a meditação – criam seres humanos como pequenos bichos de estimação e escravos. Quando os pequenos Oms – como são denominados – começam a escapar e procriar nos bosques, sua proliferação ameaça o equilíbrio do planeta fantástico.  Em sua última colaboração com Topor, Laloux desenvolve seu trabalho mais singular. Se não pela crítica pungente e a angústia da narrativa, “Planeta Fantástico” nos fascina pela dinâmica exercida por este planeta e suas criaturas.  Plantas são devoradas por criaturas voadoras apenas para se tornarem semente de uma nova forma de vida. Em seu universo simbiótico, nada é definitivamente destruído, tudo está em um eterno estágio de mutação, e a existência violenta do homem pode quebrar este elo atemporal que mantem vivo o planeta.

Seu ponto de vista poético e violento, ou selvagem, como em seu título original, concedera à “Planeta Fantástico” o dom da atemporalidade. Assistido quarenta anos após seu lançamento, o trabalho de Laloux resiste ao tempo como poucos. Sua animação, comedida e minimalista, esconde as limitações do processo atrás do charme que ela evoca.  A trilha de Alain Goraguer, os recortes visíveis e os cenários fantásticos se tornam elemento de reconhecimento do trabalho de um diretor que trabalhara apenas com os melhores artistas de sua geração.

Jean “Moebius” Giraud, considerado por muitos o papa dos quadrinhos europeus, viria a ser o colaborador em seu segundo longa-metragem “Os mestres do tempo” de 1982. Numa jornada metafísica, uma nave tenta resgatar um garoto abandonado em um planeta perdido enquanto uma consciência cósmica tenta destruir a individualidade no universo. Mais uma vez, ordem e totalidade são os inimigos de um planeta cujo a beleza é mortal. Seus belos lagos e suas frutas luminescentes são rodeadas de enormes mosquitos, prontos para abrir o crânio de quem se aventurar em seus domínios. No universo Laloux, nada existe sem um preço. Toda beleza, paz ou felicidade tem um custo alto demais a ser pago.  Seu último longa-metragem, “Gandahar” de 1988, em sua colaboração com o artista Philippe Caza – com quem fizera seu último curta metragem “A prisioneira” também em 88 – carrega a essência de toda a sua carreira.

“A PRISIONEIRA” LA PRISONNÍÈRE (1988) – RENÉ LALOUX & PHILIPPE CAZA

A pacífica civilização de Gandahar vive em eterno equilíbrio com a natureza. Após abdicarem da tecnologia encontram a paz e a beleza bucólica que tanto ansiavam, mas um inimigo desconhecido ameaça destruir Gandahar. A rainha de Gandahar não vê outra alternativa senão mandar Sylvan, o mais querido herói de Gandahar em busca de respostas. Em sua jornada Sylvan desvenda os mistérios do passado de sua civilização e descobre que seu inimigo fora criado por Gandahar. Mais uma vez, o preço pago pela paz volta para assombrar a civilização. Gandahar é responsável pela própria danação e precisa assumir sua identidade para livrar-se da unidade sem consciência representada pelo exército de máquinas que caminha em sua direção.

Mesmo sob a sombra do totalitarismo e repleto de angústia e crueldade, o trabalho de Laloux exprime as interpretações de uma mente selvagem. Seus trabalhos nunca lançados no Brasil, são completamente ignorados por uma geração de cineastas que desconhece sua existência. Seu trabalho, influente no mercado francês, criou dentro da animação francesa um senso estético e um precedente na arte do país. Após a anunciada aposentadoria de Hayao Miyazaki; cineasta japonês famoso pela disseminação da animação japonesa no ocidente; e o hiato de seu estúdio após sua partida – O estúdio Ghibli encerrou temporariamente as atividades após o premiado “Lembranças de Marnie” lançado este ano – resta à França a obrigação de manter o legado das animações em 2D.

Inspirados pela originalidade de Laloux e por sua postura em preservar a arte acima de tudo, filmes como “O gato do Rabino”, “Um gato em Paris” e “Yul e a cobra”, continuam alcançando as telonas de cinemas por todo mundo, mas por quanto tempo?  Com o advento da internet e sites especializados ao cinema arte como o MUBI, é possível ter acesso a esses trabalhos, mas quantos ainda serão feitos? Durante seus trinta anos de carreira, Laloux enfrentou diversos problemas financeiros e todos os seus trabalhos sofreram com a dificuldade de propagação de sua arte. Em um mundo dominado por Disneys e por estúdios orientais que tomaram as rédeas da animação, trabalhos de artistas singulares como os de Laloux tendem a desaparecer por entre as frestas.

Para Laloux, este declínio da animação 2D seria nada mais do que um dos estágios de mutação desta arte. Em seu universo onde nada é desperdiçado e nada é de fato eliminado, tudo transita no mesmo ciclo caótico, exercendo um equilíbrio que balanceia todas as coisas. Talvez, ainda fazendo conjecturas pela ótica de René, a humanidade e sua natureza de morte seja tão violenta quanto à dos Oms em seu planeta selvagem. Elemento chave da estrutura do caos, esta natureza que nos incita a destruir e reconstruir, sempre em busca de conhecimento, de paz ou de beleza, é justamente força motriz que mantém viva a arte, não importa quão selvagem, ou cruel.

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*Thales de Mendonça tem 25 anos, é escritor e produtor audiovisual em São Paulo. Autor do livro de ficção científica “D3-VA”, trabalha no mercado há seis anos e escreve para o Cidadão Cultura às segundas feiras.

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