Emildo Coutinho

Era um período do dia em que não tinha aula, disso me lembro. Eu vestia minhas roupas de menino pobre, já utilizadas por meus dois irmãos mais velhos, no mínimo; alguma espécie de camisa de botões e aqueles típicos shorts curtos, que os garotos usavam na época. Provavelmente também estava de chinelos, visto serem os tênis poupados para a ida às aulas. E, certamente, meus pés estavam sujos, daquela terra vermelha do oeste do Paraná.

Eu tentava mantê-los limpos, lavando-os no tanque que havia na chácara onde morávamos, com a água que vinha de uma mina. Mas era difícil, doído, para mim, tirar a terra que se acumulava debaixo das unhas. Fazia-se necessário usar a escova, a mesma que esfregávamos as roupas, de forma que as cerdas removessem a sujeira encalacrada.

Para ser preciso, não sei ao certo o porquê ou como fui parar ali, naquele explorar do colégio onde estudava. Era demasiadamente tímido, medroso, até. Fora do meu pequeno mundo era como se tudo fosse inatingível e, caso tentasse sair do átrio que a mim era concedido, poderia sofrer sérias consequências. Assim pensava eu; ao menos, penso que pensava, pois naquela época não tinha condições de refletir sobre muita coisa.

Mas sabia que, mesmo na chácara, não era em todos os lugares que poderia ir. Nadar na represa de água suja, nem pensar; muito menos brincar com os outros meninos na tulha de milho. Tulha? Bem, chamávamos de “tuia”. E hoje ainda encontro dificuldade em nomear os substantivos, em traduzir o léxico que usávamos em nosso dialeto, com as palavras do português padrão.

Enfim, não era em todos os lugares que tinha permissão para ir, mesmo em meu pequeno universo.

Porém eis que, durante aquele perambular pelo colégio, me deparei com uma sala, repleta de estantes; tão cheia de estantes que já eram vistas à entrada. E estavam cheias de livros! Livros! Muitos livros! Tantos livros como jamais vira antes! Sabe aquela surpresa estranha que temos, que podemos ter, diante de algo espetacular? Aquele tipo de sensação que faz o coração bater mais forte, descompassado? Foi bem assim que me senti.

Fiquei com um certo receio de entrar, claro. Receio bem maior do que quando transgredia as ordens e mergulhava na represa barrenta, ou na tulha de milho que deixava meu corpo e roupas brancos de pó.

Devagarinho, pé ante pé, cheguei a passar pelo batente da porta. Livros!! Muitos livros! Incontáveis livros!!

Do fundo da sala, do lado esquerdo, do nada, veio ao meu encontro a figura minúscula e ameaçadora de um homem já de uma certa idade. Cinquenta e poucos, sessenta anos? Era pequeno, todavia. Se pensar que para uma criança de oito, nove anos ele pareceu pequeno era porque, realmente, o era. Mas era ameaçador! E sua maneira de vir até mim, ao meu encontro, gesticulando e resmungando alguma coisa, me deixou amedrontado.

Não saí de lá. Desapareci. Simplesmente me apaguei e me transladei de volta ao meu mundo. Só que ficaram, até hoje, algumas perguntas:

O que foi?

Estava muito sujo?

Não estava vestido apropriadamente?

Era proibido entrar em um ambiente assim, usando shorts?

Como posso eu saber, agora?

Como faço para tirar daquele ser minúsculo e hostil – que até hoje mora em meu cérebro – a explicação para ter expulsado de uma biblioteca um menino curioso? Por que ele teima em aparecer, quase diariamente, apenas murmurando, sem falar coisa compreensível, somente caminhando agressivo em minha direção, estendendo o braço e indicando qualquer espaço que não fosse aquele recinto?

Fala, seu véio fedelho, abra essa matraca e me explique!! Caia fora dos meus miolos e desembuche antes de ir embora, seu bosta-seca. Desembuche porque vou incentivar todas as crianças, todos os meninos, todas as meninas, pés sujos ou não, maltrapilhos ou não, a invadirem as bibliotecas das escolas.

Irão abrir os volumes cujas páginas estão coladas, retirarão de lá à força, se necessário, os desocupados que ficam com o traseiro sentado perante uma tela de computador, cuja única função é burocratizar o acesso e barrar os pequenos e os poucos mestres com boas intenções; empurraremos para fora as mocreias que se acham donas do pedaço, caso seja necessário as puxaremos por seus cabelos descoloridos. Percorreremos todas as estantes, todas as prateleiras, e ai de vocês se tentarem nos impedir.

Pegaremos quantos livros quisermos. Vamos levá-los para nossas casas, mesmo que voltem danificados, não importa. Antes livros manchados, sujos, do que páginas grudadas umas nas outras.

Vamos invocar Clarice Lispector, ela foi amante de um livro chamado Reinações de Narizinho. Ela dirá, a nossa frente, isso, meninos, avante, violem as histórias, deflorem as sentenças, as linhas, os parágrafos; desgrudem suas páginas, levem-nos para casa, para o quintal, para o vizinho; durma, coma, vão ao banheiro com eles, façam coco segurando os volumes, deitem seus olhos sobre eles, sintam o cheiro do papel, mesmo que misturado com o fedor das fezes, não importa; aliás, as palavras que os olhos captam, formando frases que contam uma história, neutralizam barulho e fedor.

 

Emildo Coutinho é escritor, jornalista, professor de inglês-português e mestrando 
em Linguagens e Tecnologia na linha Estéticas, Modernidade e Tecnologia, na 
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

 

 

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