Por Arthur Santos da Silva

Talvez eu tivesse dez anos na época em que escondia debaixo da mesa pra chorar. Não tenho certeza porque considero dez anos uma idade avançada pra esse tipo de choro escondido. Mas sempre tive problemas com vínculos.

Meu pai viajava a trabalho. De início eram viagens rápidas e que acabavam com algum tipo de presente. Ganhei bonecos de soldados, coleções de carrinhos, bolas e outras coisas frágeis. Coisas pequenas em valores, mas que traziam muita alegria.

O problema foi quando o tempo que ele não existia começou a ficar maior. As semanas em que eu não podia vê-lo ganharam nomes de meses. O primeiro foi julho, mas posso estar enganado. Foram muitos os nomes de meses e assim confusão é fácil.

Aí descobri o ventre da baleia. Esse interior era debaixo de uma mesa retangular, com pontas arredondadas. Ela media algo por volta de seis metros de comprimento. Na parte de baixo havia uma espécie de viga, também de madeira, que atravessava toda a mesa pra ligar as pernas. Acho que isso era o que dava a firmeza.

Na viga, um palmo de largura, eu pequeno e magro deitava com o peito voltado pra baixo. Encostava o corpo na peça. Madeira é sempre fria. Chorava muito. Mas desenvolvi certa técnica, que era a de chorar em silêncio. Pai não ouvia. A mesa era forrada por um pano de mesa bem grande. Por aí tudo no ventre era invisível.

Faço uma conta: os seis metros de viga eram feito três pais grandes de dois metros. Por certo eu pensava que encostava o peito no peito do meu pai.

Era julho, agosto, setembro. Ele vinha pro meu aniversário. Quando ia embora eu procurava a mesa. Novembro, dezembro, ele voltava pro natal. Quando ia embora eu procurava a baleia.

Debaixo da mesa era algo de espaço com uma metafísica introvertida. Difícil explicar. As coisas que eu conseguia deduzir ficavam fora de onde o pano de mesa cobria. Ali era o útero do mundo, o templo interior ou até o paraíso terrestre.

Era a falta de meu pai, mas a falta pela presença rápida. Depois interrompida.

Num dia mataram minha baleia. Foi meu pai que matou. Depois de um tempo ele deve ter percebido o esconderijo. Em verdade creio que ele sempre soube, mas num dia tomou coragem e levantou o pano que era a pele do ventre. O que ele disse eu não lembro e não importa. Sei que interrompeu meu choro.

Como os rituais de passagem tradicionais, percebo que fui ensinado sobre a morte de um passado. Perdi meu caráter de filho e vesti o manto de minha vocação. O que acredito ser minha vocação. Conquistei, como animal, a submissão ao inexplicável. Toda proteção sumiu.

Por hoje o final feliz será desprezado, com justa razão, como uma falsa apresentação. O mundo, tal como os conhecemos e o temos encarado, produzirá apenas um final: a morte, desintegração e crucificação do nosso coração (a palavra mais romantizada do mundo) com a passagem das formas que amamos.

Vendedores de mesa deveriam ter a mesma fama dos profetas. Vivamos as catástrofes democráticas. Formei meu pai como tragédia. Fiz minha silhueta de herói. Com essa criação cresceremos todos culpados. Só aqui está a felicidade.

Te amo, meu pai.


Arthur Santos da Silva é paraibano, historiador e jornalista. Recria memórias.

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