A tarde caia. Antonia caminhava de cabeça baixa, carregando nas costas o fardo dos restos catados nos conteiners de lixo dos bairros de classe média. Em meio a poeira condensada na atmosfera avermelhada do crepúsculo, sua figura assemelhava-se a um personagem mítico, a personificação de “La loba” a velha andrajosa recolhendo os restos das almas vilipendiadas, as ossadas desfeitas daqueles que sofrem as vicissitudes da vida, que tem diante de si os descaminhos da dor, daqueles que não acreditam mais em si mesmos, nem em Deus e muito menos nos homens.
As primeiras estrelas luziam no céu carregado de presságios. Antonia olhava a lua nova que surgia no horizonte onde o sol se escondia dando entrada à passagem da noite. A fumaça insalubre da queima do lixo subia em volutas misteriosas, provocando sonhos a despeito da perversa realidade da miséria. Os casebres em derredor recortados contra o fundo claro do céu iluminado pelas cores do anoitecer imprimiam na paisagem uma sinistra forma surreal. Aqui e ali, figuras vacilantes deslizavam em meio à bruma enfumaçada recolhendo sobejos da luxúria mundana. Restos de anônimos banquetes. Pedaços quebrados de outro mundo.
Antonia parou diante do seu barraco improvisado feito colcha de retalhos. Inusitado conjunto de materiais colados uns ao outros numa arquitetura gaudiana. Depositou o grande saco no chão e abrindo-o, vasculhou seu interior a procura de um objeto específico. Seu semblante sombrio denotava uma espécie de tristeza velha, de sabedoria inocente. Um sorriso iluminou seu rosto incendiando o olhar apagado pelo percurso rotineiro de catadora de lixo, ao retirar de lá um grande espelho de moldura dourada, e ver nele refletida a sua face, a pele enegrecida pela poeira dos dias, pela pátina do tempo.
-“Estou velha “pensou, enquanto ajeitava uma mecha cinzenta que caíra sobre a testa enrugada, e recolhia o espelho para dentro das precárias paredes da sua moradia. Ajeitou-o sobre uma mesinha improvisada, feita de um caixote de verduras, e soltando um grande suspiro voltou para fora onde dedicou horas a separar o produto do dia. A coleta tinha sido uma das melhores do ano. Antonia descobrira uma luxuosa mansão que estava em reformas e todos os dias passava por lá para catar o que fosse proveitoso. Afinal o que era dispensável para os ricos era uma dádiva para os miseráveis como ela.
Nas ruelas poeirentas a criançada da vizinhança corria em alegre algazarra e Antonia as acolhia para dividir com elas as sobras do alimento catado sem pressa, numa sistemática triagem, trazendo apenas o que ainda não fermentara no despejo do lixo urbano. Ao seu redor as crianças se amontoavam ansiosas com a possibilidade de matar a fome, e cheias de curiosidade para ouvir da boca de Antonia, a velha, suas fabulosas histórias. Depois de satisfeitas, seguiam para os seus barracos e atiravam-se nos braços do sono bom e reparador. Só Antonia não dormia. Ficava a olhar o céu cravejado de estrelas, sonhando com a vida nos palácios, com o amor que há muito tempo tivera e que a morte cruelmente lhe roubara.
O sereno da madrugada caia e entre as brumas do horizonte, em meio as luzes reverberantes da cidade ao longe, Antonia via um novo e maravilhoso mundo, cheio de bem aventurança. Pobre Antonia, com suas mãos enegrecidas pelo trabalho duro, seu rosto marcado pelo sol e pelo vento, os cabelos grisalhos, bastos, embaraçados, era um espectro de gente, uma sombra da gentil criatura que outrora fora. Restara-lhe apenas a coragem de continuar a lutar pela vida que lhe negara o direito de viver dignamente como ser humano. Habitar a orla do lixão era um desafio sem limites, era habitar o caos. Vencida pela fadiga, finalmente adormeceu para acordar depois de algumas horas e retomar sua atividade de catadora de lixo.
Saiu com seu grande saco de coleta nas costas, os pés afundados na poeira da estrada que levava ao bairro onde estava o seu “tesouro”. Mas ao chegar diante da mansão em reforma, viu com tristeza que outros haviam descoberto seu segredo, o conteiner estava vazio, os preciosos objetos que selecionara para carregar no outro dia haviam desaparecido. Decepcionada, vagou a esmo pelas ruas, catando latas, garrafas e alimentos lançados fora no costumeiro desperdício das cidades. Voltou ao seu barraco sem animo para nada. A gurizada a cercou alegremente, gritando seu nome em alvoroço. Antonia dividiu entre a meninada o parco banquete de sobejos e recolheu-se ao interior do seu casebre miserável.
Naquela noite não teria nenhuma história. A velha estava estranhamente triste. As crianças se retiraram caladas e espalharam a noticia que Antonia estava doente. Mas ninguém se importou com isso. Ela deitou-se na cama improvisada com papelão e espuma e ficou a admirar a beleza do grande espelho de moldura dourada. Porque quisera tanto aquele espelho? Nem sequer tinha beleza ou vaidade para dele fazer uso. Pensou que era melhor vendê-lo. Assim que amanhecesse o dia o levaria a um pregão e obteria um bom preço, era cristal legítimo, isso ela sabia, já trabalhara em casa de gente muito rica e não restava dúvida de que se tratava de objeto de grande valor.
A noite estava escura. O céu sombrio sem estrelas. Lá fora um vento uivante fazia gemer as tábuas mal arranjadas do barraco. Antonia levantou-se preocupada, trancou a porta que batia com a violência da intempérie e percebeu a tempestade que se aproximava. Pesadas nuvens avolumavam-se no horizonte turvo, carregadas de eletricidade. Relâmpagos pipocavam por toda a extensão do céu cinzento, e ouvia-se ao longe o rugido da grande massa de água que desabava sobre a terra. Ela voltou à cama onde estendeu o corpo cansado. Uma rajada de vento abriu de súbito a janela e um fulminante raio seguido de um estrondo partiu o espelho ao meio. A chuva desabou destruindo parte do teto e das paredes. Mas para Antonia, a velha, nada mais importava. No pequeno colchão ela agora repousava, sob o derradeiro manto do sono eterno.