Ivy Menon

Logo que nos mudamos para a casa do fim da rua, perto do buracão, descobrimos a riqueza do lixo. Na cidadezinha da minha infância só existia coleta de lixo no núcleo central, exclusivo para os moradores das áreas nobres e comerciantes. Eu me lembro de passar pela casa do único médico do Município, com aquele sobrenome húngaro, e espiar pelo quadrado da fechadura com um trinco de ferro, um mundo inacessível para mim. Ele tinha uma filha e lhe dava muitas bonecas de presente. Lindas. E bicicletas cor-de-rosa. Eu sabia que havia modo de vida diferente do nosso. Nada de inveja. Apenas sonho de ter, um dia, brinquedos bonitos.

A despeito das faltas, vivíamos felizes na nossa inocência. E fazíamos a maior folia, quando ouvíamos o barulho do carroção de lixo descendo a ladeira! Gritávamos e corríamos, feitos loucos, para ver quem chegava primeiro ao local onde seria despejado o lixo. Catávamos ferro, cobre, lata e alumínio, que vendíamos para o Seu Agenor, o pipoqueiro. Ele pagava o equivalente a uns cinquenta centavos por quilo do badulaque mais precioso que encontrávamos. Eu e meus irmãos com uns fios de cobre ou uma panela velha de alumínio conseguíamos comprar um pão. Ou algumas balas “sete belos”. Nossa fome de lixo e de comida jamais se saciava.

Com doze anos, continuava absolutamente criança, porém foi quando me tornei o papai-noel da família. Da venda do lixo, juntei dinheiro para comprar uns jipes de plásticos, que coloquei nos toscos bercinhos forrados de capim, preparados e deixados debaixo da cama por meus irmãozinhos. Não aguentei o vazio de tantos natais e resolvi do meu jeito. Tempos difíceis. A alegria deles, de manhã, a empurrarem o presente no chão batido, gratos a Deus por, enfim, Papai-Noel ter se lembrado deles, me obrigou a continuar a fantasia. Ainda hoje.

Quando as férias chegavam e não tinha trabalho na roça, eu ia passar escovão no assoalho de alguma professora. Queria guardar dinheiro para as bonecas. Nunca podia. Ajudar a família a comprar comida ou pagar o aluguel do mísero barraco, era prioridade. Sonhava com bonecas-bebês, gordinhas e fofas. Nunca entendi a magreza da Susies, as precursoras da Barbies.

Minha mãe teve tantos nenês para eu cuidar, que não compreendia uma boneca moça. Nem queria uma. No lixo, elas chegavam sem pernas. Ou sem braços. Só cabeça. Tronco nu. Bastava colocar juntar os membros, que achávamos perdidos, e uma linda boneca inteira, ainda que meio tronche. Um carrinho azul de verdade, não o de lata ou de rolimã que construíamos, meus irmãos esfomeados buscavam.

Jamais comemos comida achada no lixo. Matávamos passarinho e buscávamos osso no açougue. Tínhamos abóboras e cebolinha. Arroz e feijão faltavam, mas caldo de osso com farinha e cebolinha nos salvavam da fome. No tempo das “galinhas gordas”, a mãe permitia que fizéssemos gemada uma vez por semana. Precisava de ovos para chocar os frangos do futuro. Outra coisa que não entendia: eu preferia os ovos do presente que os frangos do futuro.

Não tinha poesia, no lixo. Raros livros. Eu os guardava. Não havia carniças, urubus e um monte de jornalista entrevistando e fazendo filme como em “A Ilha das Flores”. No entanto, se consumia menos, assim as sobras também eram poucas. E a disputa grande.

No lixo da minha memória, nós vivíamos uma solidão ávida e barulhenta. Não sonhávamos mais que o possível. Correr à procura de tesouros dava mais sentido à vida. Uma fantasia quase igual a de ganhar na loteria. Balinhas doces, carrinhos de plástico sem rodas, bonecas emendadas eram a realidade. Mas, de alguma forma, uma espécie de esperança se renovava duas vezes por semana com o barulho da carroça. Ainda que quase sempre vazia.

 

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

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