Em dezembro de 1967, um manifesto marcava o início do que seria considerado o movimento mais radical de poesia no Brasil. Há exatamente 50 anos, talvez não fosse possível afirmar que aquele manifesto transformaria a noção de arte de vanguarda. Foi em fevereiro de 1968 que o poema//processo ocupou as manchetes dos jornais com chamadas como: “Os inimigos da poesia”.
Nas escadarias do Teatro Municipal de Cinelândia (RJ), os poetas rasgaram livros da poesia brasileira. O episódio ficou conhecido como “rasgação” ou “rasga-rasga”. À primeira vista poderiam ser considerados hereges da cultura, mas a radicalidade do movimento era um contraponto. O período histórico era de repressão total em plena ditadura militar, no mesmo ano do Ato Institucional nº 5.
Um dos fundadores deste movimento é o precursor da poesia visual Wlademir Dias-Pino. Até chegar ao poema//processo, um longo caminho é trilhado. Desde 2014, quando o entrevistei pela primeira vez, ao receber o título doutor honoris causa da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), tenho me dedicado a pesquisar sobre seu trabalho em busca de compreendê-lo.
Nosso último encontro aconteceu em outubro no Rio de Janeiro, na casa repleta de cores da poeta visual Regina Pouchain. Sentado em uma cadeira de balanço de costas para um enorme arquivo, Wlademir conta sua trajetória e a relação com a cidade de Cuiabá.
Para explicar como surge o poema//processo, é preciso dar uma volta no tempo e retornar nos idos de 1938. Naquele ano, Wlademir junto com o poeta cuiabano Silva Freire, começam a pensar o movimento de arte denominado Intensivismo.
Sua trajetória é incomum. Wlademir chega a Cuiabá em 1936, ainda criança, e sua infância é repleta de formas para além do papel. A família do pai possuía a gráfica como ofício e Wlademir cresceu rodeado por tipos. Ele diz que sempre sentiu vergonha de ser poeta. É por isso que queimou os livros com os poemas que escondia e impressos por seu pai como uma surpresa.
O intensivismo
Depois desse episódio, o Intensivismo é pensado pelos dois poetas. A partir daí, Wlademir começa a buscar uma nova expressão artística que superasse o modernismo, que chegou tardiamente em Mato Grosso. A imagem na poesia como vocábulo, essa era a intenção dos intensivistas.
“Olhamos para a natureza com suas formas, a mangueira, o abacateiro, não eram daqui (Cuiabá), e éramos contra essa colonização, essa importação, não podíamos confiar nem na visualidade da natureza. Então fomos cavucar o chão e achar aí as formas de expressão, o ouro, o diamante e desenterramos do subsolo. Eu morava na Rua Nova e a calçada era de pedra canga, essa terra ferruginosa, a pirraça. Se antes era regional, agora é territorial”, explicou.
São 10 anos pensando o lançamento deste movimento de arte, e em 1948 o Intensivismo encontra suas expressões nos jornais produzidos na gráfica do pai de Wlademir. O primeiro foi o Sacy. Estes jornais eram colocados debaixo das portas durante as madrugadas e por isso Wlademir começou a ser isolado dos colegas na cidade. Depois do Sacy, veio o Sarã com Rubens de Mendonça. A ideia era ir contra a influência da igreja na cultura e na educação. “A literatura tem sido usada pela política e em função dos poderosos”, criticou Wlademir.
Do Intensivismo, nasce o livro que o consagrou como o precursor da poesia visual: A AVE. Concebida em 1948, por ser um livro artesanal, com apenas 300 exemplares, o lançamento oficial ocorre apenas em 1956.
É o primeiro livro-poema de que se tem registro e revolucionou a poesia e a literatura com perfurações, transparências, gráficos. Uma visualidade radical, um rompimento daquilo que até então se entendia como arte. A AVE rompe com a barreira entre leitor e autor. É um convite para que o leitor intervenha na obra e faça da sua própria experiência uma nova narrativa, releitura daquilo que propõe Wlademir com este livro-poema interativo.
“Percebi que o simbolismo teve a possibilidade de passar influenciando o modernismo, e eu fiz a mesma coisa. Peguei o intensivismo e passei, atravessei o concretismo que era vanguarda e 10 anos depois preparei uma nova geração para dizer que poema//processo nasceu de um livro cuiabano. Então o poema//processo é intensivista, atravessou aquele rigor do concretismo para vir até aqui”, observou.
O concretismo
Em 1956 integrou o concretismo à convite dos irmãos Campos e de Décio Pignatari e participou da Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo, naquele ano, com versões em cartaz de Solida. Mas aquilo que o movimento noigandres (Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos) se propunha a fazer com o concretismo já era caminho trilhado por Wlademir há muito tempo em Cuiabá. Além de Wlademir, Ferreira Gullar também é outro nome expressivo do concretismo.
É anunciado na imprensa, um “rompimento”, termo que segundo Wlademir é mal empregado. “Não houve rompimento com noigandres. Movimento é movimento, não é grupo e trio não é movimento. E depois disso o Ferreira Gullar criou o novo concretismo e eu cheguei até o poema//processo”, afirmou.
O poema//processo
Não é só o movimento mais radical da poesia no Brasil, mas também o que pretendeu uma integração entre os estados que estavam à margem do eixo Rio-São Paulo. O poema//processo reuniu mais 60 poetas para firmar-se enquanto movimento.
“Foi feito o concurso do Instituto do Mate, eram 3 mil poetas concorrendo e os críticos eram Drummond, Manoel Bandeira e Estela Leonardo. Os poemas mais audaciosos eram jogados fora pelos funcionários, que deviam considerar aquilo uma brincadeira dos poetas. Eu reuni todo aquele “lixo” e convoquei por carta e fiz um anúncio no Jornal do Brasil: “Poesia, você que participou do concurso, ligue para tal telefone”, e foi aí que comecei a entrar em contato com os participantes”.
O movimento era no Brasil inteiro conectando os estados periféricos de Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Espírito Santo. Wlademir era o único poeta com livro publicado e encabeçou o poema//processo. O processo como parte do poema, para ir contra o aprisionamento do código alfabético, democratizar a poesia e as linguagens visuais, uma poética para ser assimilada universalmente.
Os 50 anos do nascimento do movimento mais radical, revolucionário e de vanguarda da arte brasileira teve uma tímida “comemoração”. Pouco se encontra sobre a data na imprensa, mas a Biblioteca Mario de Andrade em São Paulo abriga uma exposição sobre o poema//processo (confesso que fiquei um pouco decepcionada com o conteúdo selecionado). Ainda assim, vale para conhecer mais sobre essa história. A mostra fica aberta para visitação até o dia 16 de dezembro.
Aos 90 anos de idade, Wlademir Dias-Pino continua a trabalhar todos os dias em seus projetos, ou melhor, em seus processos. Sempre em aberto, sem conclusão. Em sua narrativa é perceptível a importância de Cuiabá para a sua vida. É difícil dimensionar o impacto desta “Sólida, Solidão”.
“Sólida Solidão é Cuiabá. Essa cidade do absurdo, que nasce do chão por causa do veio do ouro, brotou do chão. Cuiabá não deve lamentar as brenhas da solidão, é isso que a diferencia, que origina algo especial na nossa brasilidade”, defendeu o poeta.
Mais uma vez, eu desço a espiral de Dias-Pino e me perco na imensidão da sua arte.
[…] giro na história demonstra que a arte rompe com as fronteiras físicas do tempo. Afinal, o poema//processo completou 50 anos em dezembro de 2017, e, em 2019, dois artistas estão colocando em prática os conceitos criados […]
[…] giro na história demonstra que a arte rompe com as fronteiras físicas do tempo. Afinal, o poema//processo completou 50 anos em dezembro de 2017, e, em 2019, dois artistas estão colocando em prática os conceitos criados […]