Serafim era dono de uma loja de espelhos, mas não haviam espelhos em sua loja, pelo menos não a vista. Belas molduras estampavam as vitrines, mas eram só molduras, sem espelhos. Serafim não gostava do seu reflexo, não era Narciso, não possuía beleza para apreciar. Era contra os espelhos, nem entendia porque as pessoas os compravam.

– Espelhos aumentam o índice de suicidas – costumava dizer. E se duvidavam, ele só respondia: é verdade. E voltava para trás do balcão.

Quando o indagavam pelo porque de vender os espelhos, sendo que não gostava deles, Serafim dava uma bufada profunda e rebatia: – Ora, é preciso que alguém o faça, não?

Os espelhos ficavam em um depósito atrás da loja. O ajudante Dino era quem os media e realizava a entrega das encomendas. Serafim? Atendia o telefone e ficava no balcão a olhar as sujeiras debaixo das unhas; mas nunca as limpava.

Se alguém batesse em sua loja querendo comprar moldura, Serafim resmungava: – Só vendemos espelhos.

– Eu só quero a moldura.                                                                                                      – Não vendemos moldura separadamente, cada uma tem o seu par, atrás do depósito, escolha uma e Dino irá colocar o espelho para você.
– Mas só há molduras sem espelhos nas vitrines, pensei que fosse uma loja de molduras.
– Não, vendemos espelhos.
– E as molduras?
– Vem com os espelhos.
– Mas eu pensei que poderia comprá-las separadamente.
– Não pode.

E Serafim saia, deixando o cliente a olhar as belas molduras sem espelhos.

Dino ficava no depósito cortando os espelhos encomendados, a porta deveria estar sempre fechada. Serafim não suportava os espelhos.

– Ei, terminou aí? perguntava Serafim do outro lado da porta.
– Quase. O que foi?
– Mais um querendo comprar molduras.
– E porque não as vende de uma vez?
– Porque cada moldura tem o seu espelho, é o que eu sempre respondo. Porque vocês não entendem?

Dino abriu a porta e saiu, fechando-a em sequência. Olhou para Serafim e o aconselhou:

– Olha patrão, acho que você anda perdendo muito dinheiro com esse papo de não vender molduras. Não existem espelhos nas vitrines, como as pessoas deverão saber o que se vende ou deixa de vender?
– Meu caro ajudante, não sei o que você pensa da vida, ou o que você acha que sabe da vida… mas os espelhos, só inflam egos, não são do bem. Espelho não é coisa de deus!
– Então porque os vende?
– Olha… Você mexe com os espelhos, eu mexo com o dinheiro. As malditas molduras continuarão na vitrine, e quem quiser comprar, terá que levar o seu complemento!

Serafim odiava ser indagado sobre os espelhos.

Odiava ter uma loja de espelhos. Odiava que as pessoas comprassem os espelhos. Odiava o egocentrismo. Odiava a necessidade que as pessoas tinham de se olhar, de se admirar.

Mas a loja da Avenida Gusmão era tradicional no centro da cidade. Era um negócio de família, e Serafim havia-a herdado do pai. Fazia vinte anos que tocava o negócio. Quando começou a vender espelhos, Serafim começou a perder os cabelos. Os poucos que sobraram eram brancos e ralos. E isso fazia-o odiar ainda mais os espelhos. Os malditos tiraram-lhe até os fios da cabeça.

Quando o patrão ficava nessa agitação frenética, devido as recorrentes perguntas e dúvidas dos clientes, sobre as molduras e os espelhos, Dino ficava intrigado. Por mais que Serafim desse todas as supostas explicações do por quê odiar tanto os espelhos, não era convincente o suficiente. Nada daquilo fazia sentido. – Velho maluco. Fechou a máscara de proteção e continuou a cortar o vidro. Ainda precisava fazer esta última entrega antes do fim do expediente. Quando finalmente deixou a loja faltavam quinze minutos pras seis.

O grande relógio atrás do balcão de Serafim marcava os últimos cinco minutos do dia. Metodicamente, Serafim acompanhava o tic tac, e contava junto com o relógio, o tempo que faltava para dar no pé, daquela aberração de espelhos. Contava os segundos e contava o dinheiro. Era o último balanço do dia, estava fechando o caixa, quando ouviu o sino da porta tocar. Ao levantar os olhos, viu dois homens em sua direção com um volume embrulhado em papel pardo. Serafim conhecia bem esse tipo de embrulho.

– O que tem aí? É um espelho?
– Estamos devolvendo a mercadoria, a dona do apartamento disse que aqui só há uma moldura, sem espelho.
– Impossível.
– Bom, nós temos que ir, ela só nos pagou para trazermos a moldura aqui, com licença.

Do mesmo jeito que entraram, saíram e Serafim se viu sozinho encarando o grande embrulho pardo. O relógio marcava seis horas e um minuto. Cresceu a ânsia dentro de si, não suportaria mais um minuto ali dentro.

Mas uma força oculta e meio sobrenatural, fez crescer dentro de Serafim uma vontade secreta, que ele trazia no peito. O embrulho era tão grande, devia ser uma enorme moldura. Não lembrava de ter vendido uma dessas por esses dias. No papel, só havia as iniciais: F. A.
Buscou nas notas fiscais os nomes dos clientes daquela semana. Não havia ninguém com nome assim.

Se aproximou do embrulho e analisou. Parecia um trabalho bem feito, tão bem feito, que parecia mesmo um dos embrulhos de Dino. Mas então não seria possível, a dona teria que abri-lo para saber se havia moldura com espelho ou moldura sem espelho. Deu de ombros e resolveu rasgar o papel pardo.

Na primeira puxada viu despontar o dourado trabalhado, realmente era uma de suas molduras, uma das mais caras… Terminou puxando tudo de uma vez e soltou um grito mudo.

Dino chegava na loja, todos os dias, às seis e meia da manhã. Era de sua responsabilidade abri-la. Ficou surpreso ao encontrar a porta destrancada.

Quando entrou não havia viva alma ali dentro, apenas uma moldura dourada, rodeada de pequenos pedaços de espelho quebrados pelo chão.

original

Compartilhe!
Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here