Isabela Câmara Bonilha
In Memorian de Sandro de Oliveira Silva, o Pau-Rolô.
Éramos amigos de infância. Ele era dessas pessoas que a gente não se lembra como conheceu, porque é como se sempre tivesse existido dentro da nossa vida, no entanto, fazia um bom tempo que a gente não se falava, embora morasse desde sempre na mesma rua. Imagine você minha surpresa quando pisei ali. Surpreendi-me também por não ter adivinhado antes o que aconteceria.
Me lembro bem, nós dois pequenos jogando bola na rua, muitas vezes me defendeu nas brigas que eu arranjava, muitas e muitas tardes passamos juntos catando manga nos quintais vizinhos, muitas vezes o levei pra almoçar em casa. A mãe do meu amigo não teve tempo de fazer almoço pra ele, eu falava pra minha, que compreendia e balançava a cabeça com um sorriso dócil. Ela era muito melhor do que eu. Tão melhor que, mais tarde, quando fui fazer faculdade e ele foi preso por uma quantidade de craque que o enquadrou como traficante, ia sempre à cadeia pública levar-lhe cigarros e alguma comida. Não se submeta a isso – eu dizia – não vai valer a pena. Mas ela apenas balançava a cabeça com o mesmo sorriso dócil de quem entende as coisas que jamais entendi. Ele era só o malandro otário, me disse, depois de tudo. A vida é muito mais complexa do que parece, meu filho.
Entre as muitas idas e vindas da prisão, construiu um barraco de madeira em um terreno baldio da cidade. Nas férias, alguns moleques da antiga turma o depredaram sorrindo embalados pelo álcool. Eu sorri também, embora um sorriso meio duro de sair. Não tive coragem de dizer que aquilo não era o certo, que ele era sempre o cara que cuidava de tudo, que cuidava das bolas de basquete e dos uniformes, que trazia o gelol e as faixas quando a gente se contundia. Nunca teve tino pro esporte, mas sempre teve tino pra cuidar dos outros. Éramos muito diferentes: eu sempre tive medo da humilhação e do que as pessoas pensariam. Ele não.
Quando voltei da faculdade de direito e ele da faculdade do crime, passamos novamente a morar na mesma rua. O falecimento de minha mãe e a morte da sua nos levaram a nossas antigas casas da infância, acontecimentos em comum dos quais não usei para nos aproximar. Eu passava em frente à casa sem iluminação elétrica (haviam cortado há muito, por falta de pagamento) todos os dias ao me encaminhar pra padaria da esquina, comprar o café da manhã pros meus dois guris. Não era incomum que me pedisse: deixa eu lavar seu carro, me paga “déizão” e tá tudo certo. Sempre me neguei com medo de que algo sumisse dali de dentro, além disso ele tinha pego doença de cadeia e minha esposa não gostaria que aquelas mãos encardidas das noites enlatando noia apalpassem os bancos onde nossos filhos se sentariam mais tarde. Pensando fazer o bem (ou mesmo supondo que não), eu dizia: depois, outra hora, tô com pressa… ou ainda: deixa dessa vida, vai trabalhar. Mas quem daria emprego?
Passei então a atravessar a rua a modo de não pisar em sua calçada enlodoada, onde os malacos se reuniam quase toda noite pra inalar craque à luz de velas. Cidade pequena, já viu. Não há muita divisão e as casas das pessoas de bem por vezes compartilham a rua com lugares onde acontecem tais coisas. Esta manhã, no entanto, não foi assim: já me preparava para mudar de calçada quando vi uma acumulação de curiosos em torno da sirene ligada da polícia local. Preso mais uma vez, pensei, esse aí nunca aprende. No entanto, alguma coisa no rosto das pessoas me fez compreender que algo diferente havia acontecido. Não sei o que me deu. Fui chegando perto da pequena multidão sem pensar exatamente, apenas por instinto. Ultrapassei a barreira de policiais, alguns velhos conhecidos, outros bem mais novos que eu, e entrei na sala da casa escura. O cheiro de cinzas de cigarro e noia ainda pairavam no ar, resquícios das outras noites. Uma garrafa de pinga Pitú jazia ao lado da enorme poça de sangue na qual pisei sem dar pelos sapatos recém-engraxados, uma única mancha de luta se mostrava no chão. Morrera dormindo, alguém disse. Dezessete facadas, disse outro. Havia acabado de sair do hospital após apanhar muito na tarde anterior. Briga feia e desleal. Era por causa de droga? Ninguém imaginou que o outro revidaria na calada da noite. Ninguém se preocupou em tomar medidas de defesa.
Saí caminhando lentamente da mesma forma que entrei, instintivamente. O sangue do meu amigo de infância criando um rastro da rua até a minha casa, onde entrei (sem ter comprado o pão) e manchei o porcelanato de minha esposa que gritou aturdida. A imagem do garotinho negro sentado à mesa comendo macarrão ao sugo não me sai da memória, os lábios lambuzados de carmim. Estou sentado há não sei quanto tempo, as horas se perderam no vermelho da poça. Não consegui levantar pra ir ver velarem seu corpo morto. E ainda não tirei os sapatos.
*Isabela Bonilha - Formada em Letras Português e Literatura pela UFMT, professora, escreve desde os oito anos. Tem um blog que nutre desde os 13: Um Vagabundo e as Estrelas. Apaixonada por arte, gosta de pintar, costurar, customizar e alterar coisas ao redor, mas se encontra mesmo na escrita. Seu cenário é Guiratinga, na qual nasceu e foi criada.