Já conhecia de nome o artista: João Silvério Trevisan. Meu irmão, em sua biblioteca particular, tinha alguns de seus livros. Um que herdei é o “Livro do Avesso”, que levei até Curitiba ano passado para obter seu autógrafo, no Litercultura. Na oportunidade ainda adquiri o “Pai, Pai”, isso em agosto (vai fazer um ano)  e que só agora consegui ler, devido à fila enorme e que só aumenta.

Para não dizer que nada havia lido de sua obra, o conto “Dois corpos que caem”, integrante da antologia da editora Objetiva, “Os cem melhores contos brasileiros do século” havia me marcado profundamente pela intensidade do fluxo narrativo a que as personagens se submetem. Eis que me deparo com a observação de João, no “Pai, Pai”, acerca da publicação, e que me instiga para repensar, sempre, as antologias e, sobretudo, o cânone:

Quase no mesmo período, vivi um episódio que me fez sentir o massacre em sua máxima contundência, pois envolvia meu pai. Eu o inseri no conto “Crianças”, que inicialmente foi escolhido para participar da antologia Os 100 melhores contos brasileiros do século XX, organizada por Ítalo Moriconi, mas acabou substituído por outro também da minha autoria (TREVISAN, 2017, p. 56).

João Silvério explica que os editores acharam por bem trocar esse conto por outro, pelo fato de que aquele não poderia ser lido na escola, devido à temática abordada pelo autor. Ocorre que a abordagem trata da questão essencial de toda uma vida: a homossexualidade. Filho de José e de Maria, sua carpintaria revelou-se a literatura. Ministrante de oficinas de criação literária desde 1987, Trevisan faz de “Pai, Pai” um encontro consigo mesmo. E traz muitas referências a eventos familiares que são travestidas em contos e passagens de seus romances.

O livro, em que pese a densidade de recordações profundas, acerca-se de revelações interessantes para quem trata a intersubjetividade da escrita como algo valoroso. Quer seja um escritor em busca de referências, quer seja um leitor que não se contenta com enredos superficiais e aventuras rocambolescas. Detalhando os trinta anos de alcoolismo do pai, a morte repentina da mãe por conta de um aneurisma cerebral, além da tia que morrera depois de muitos anos internada em manicômio, dentre outras aventuras reais de sua jornada caseira, João Silvério ainda nos presenteia com seu exílio voluntário pela América latina, Estados Unidos da América e tournés pelo velho mundo.

Há passagens sobre a mãe que são marcantes, embora quase que o livro todo estabeleça paralelos com o pai. “No hospital, José repetia indefinidamente que queria voltar a Ribeirão Bonito. Coloquei essa cena na boca de um personagem de uma novela inédita, “Os sete estágios da agonia”, a primeira obra de ficção que escrevi, ainda nos anos 1970, e que nunca publiquei” (idem, p. 18). Outras observações dessa natureza vão se superpondo no magma que se forma em meu cérebro de leitor: “… fui deixando rastros da figura paterna ao longo da minha produção literária ou cinematográfica. Nunca tinha me dado conta de que eram tantos” (idem, p. 27).

Essa figura emblemática da cultura brasileira, cineasta com inúmeros prêmios em sua carreira, adentra ao palco da Capela Santa Maria naquele inverno de 2018 e começa a desfiar seu ideário de lembranças que recobrem o processo criativo que se estende por mais de cinco décadas, semeando flores no jardim coletivista do que se apresenta como uma comunidade de leitores ávidos por suas histórias. Debaixo do braço ostentava algo que a editora havia lhe enviado horas antes da viagem a Curitiba, a reedição de seu clássico “Devassos no Paraíso”, espécie de bíblia do movimento LGBTQ (acho que é assim a sigla, não? sempre há nova letra a integrar a sigla).

João falava de seus livros como um pai que gosta de todos os filhos. Em determinado momento se refere àquele exemplar que eu ostentava a fim de solicitar o autógrafo, ao final. Dizia que era um livro que poucos deviam ter lido. Foi quando em um rápido rompante levantei o objeto e o apresentei em público. Vibrei internamente com a satisfação que João demonstrara em ver um livro tão querido onde provavelmente não imaginava.

Este filho de José e também de uma Maria discorre em “Pai, Pai” sobre sua relação com a mãe, em algumas passagens. “Mesmo durante o período da sua longa agonia, essa mulher me abriu espaço para a arte. Ao lado de sua cama no hospital, enquanto aguardava a evolução de um aneurisma cerebral que a deixou em estado semicomatoso durante um mês, terminei meu primeiro roteiro profissional – com o qual ganhei meu primeiro prêmio em cinema” (idem, p. 36). E as referências a passagens de sua vida que inundam suas obras, continuam:

Além de me considerar no geral um ser estranho, minha timidez tinha a ver com o rosto sardento, motivo de molestação na escola – tanto quanto meu segundo nome, que colegas gritavam para me referenciar ao grande traidor da pátria Joaquim Silvério dos Reis, um “palavrão” que me deixava arrasado. (De tão marcante, aproveitei essa cena num dos meus romances) (idem, p. 51).

Penso em uma dessas situações que me pareceu especial. Trevisan recorda um episódio da infância, em que, mordido por um cachorro provavelmente afetado pela raiva, seu irmão teve socorro pelas mãos da mãe (sempre as mães), que correu com ele em busca de auxílio. “Os exames confirmaram a doença do animal. Meu irmão passou semanas seguidas sendo levado até lá, para tomar dolorosas injeções na barriga contra a raiva. Na época, escrevi um conto a partir desse episódio, mas nunca o encontrei nos meus arquivos” (idem, p. 93).

Vejo pelas redes sociais que está próximo de acontecer o Litercultura 2019, mesmo com toda a crise inventada por não sei quem, mas que nos atinge em cheio. Ando pensando em escrever um conto em que faça uso dessa curiosidade imberbe daquele garoto. Mas não sei se devo. Nem sei se quero. Será que faço?

 

REFERÊNCIA

TREVISAN, João Silvério. Pai, Pai. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2017.

 

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here