Acordo com vontade de ler poesia. Vou até as prateleiras e recolho alguns livros. Cada qual com seus feixes de luz. Mas quero a experiência de quem olha a palavra por dentro e interpreta cada sentimento pelo vão estreito da condução de sentido; e que nos projeta para além de.

Hoje, a cultura está ainda mais fortemente presa à ideologia que nos tempos de Hegel. Isso não impede que ela entre no regime da fantasia poética, e que, no preciso momento em que se muda em canto, ela se desfaça de seus rótulos e se refaça em um jogo de combinações sensíveis. (…) O mito, quando cruza o limiar do poema, recupera a inocência que perdera no compromisso com esta ou aquela ideologia abstratamente considerada. Daí, a regra de ouro, hoje tão difícil de seguir: deve-se ao grande poeta uma suma indulgência em relação a seus equívocos ideológicos. (…) fora do contexto mitopoético (…) são redimidos pela paixão, pela música e pela festa livre das palavras.

(BOSI, 1977, p. 153).

Alfredo Bosi

Juízos de valor se praticam a torto e a direita, como diz o ditado; à esquerda também. A obra de arte não deve ser objeto de censura. Se, como no entendimento de Borges, um poema de hoje traz em seu bojo todos os poemas já escritos,

Não sei dizer se minha mãe está

aterrorizada ou apaixonada pelo

meu pai parece tudo

a mesma coisa

(kaur, 2017, p. 40).

Seria bastante simples recorrer a Freud para a compreensão, mas as idiossincrasias de imigrante da Índia que vive no Canadá desde os cinco anos, que começou a desenhar inspirada na mãe, que tinha dificuldade de aprender o inglês, e que nem por isso se perdeu onde os valores humanos não correspondem à cor da pele ou ao tipo de cabelo, como ficariam?

Acordei e o meu cabelo já estava de pé

Na verdade foi ele quem me levantou

Muito além do gueto

Poder para o povo preto

Branco, amarelo, róseo

E índio.

(SOBRAL, 2019, p. 82.

Cristiane Sobral

Pensar a poesia como extensão da voz, e a corporificação para além da contiguidade expressa deve ser algum indício. A produção discursiva em torno da arte é de se considerar.

Assim como o mito da democracia racial é discursado como forma de encobrir os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o tipo de penteado, de manipulação, e o sentido a eles atribuído pelo sujeito que os adota podem ser usados para camuflar o pertencimento étnico/racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra (GOMES, 2008, p. 26-27).

Maiakovski tornou-se o poeta da revolução após abrir mão do futurismo que se alastrou pelo fascismo. Tornou-se revolucionário abraçando o bolchevismo. Cassiano Ricardo colocou-se a serviço da direita institucionalizada. Massaud Moisés nos atira o conceito de Mitopoese para que sigamos em frente:

Diz-se dos mitos que alguns poetas ou prosadores criam ou de que se servem como elemento ou moldura das suas obras, não raro de inflexão epicizante (…), [há] quem negue tratar-se de mitos, mas de “fantasia individual, expressando uma ação simbólica, equivalente à ou relacionada com a expressão do rito público do mito”.

(MOISÉS, 2004, p. 303-304).

Esse vai e vem das fantasias individuais ou coletivas, em que o estandarte da vida vai passando aos gritos de que “eu avisei”, ou ainda “eu já sabia”, ou mesmo de que “tanto faz”, seria apenas para inglês ver, saída à francesa, ou ensino de uma língua qualquer para nos globalizarmos: “dansk for begyndare” (dinamarquês para iniciantes?)

alguém moveu as pedras do jardim você não

vê?

gosto de rir por dentro

de você

enquanto as sombras passeiam

pela casa

de manhã coamos

um café

“tão bom”

o que você diz sempre

faz rodar de novo

a colherinha

(ERBER, 2017, p. 29).

Laura Erber

Os poetas podem se guiar pelos ritos, de acordo com sua visão de mundo, e a mescla que se forma não deve ser objeto de censura de quem enxerga os andaimes como  defeito, ao invés de perceber que o eu-lírico os pode deixar a vista para que cumpram alguma tarefa. Erber, acima, se utiliza de um elemento parnasiano que ganha função específica, o enjambement: “o transbordamento de um verso em outro: (…) a ruptura de cadência determinada pela simetria dos segmentos ou gerando a mudança rítmica da estrofe” (MOISÉS, 2004, P. 143). A sucessão dos sintagmas constituída pelo deslocamento demonstra essa quebra da cadência, o que pode sugerir tensão positiva no diálogo, ao café, sobretudo pela ambiguidade gerada a cada quebra. Extraída da tradição, essa ferramenta serve de base para novas construções.

A chave-tetra

inteira lisa

dispensa

 

o segredo gravado,

 

dentado somente

na minha carne.

SANCHO, 2019, p. 84).

Isabela Sancho

O poema de Sancho propõe uma reflexão acerca da codificação/decodificação existente. A chave-tetra garante os interditos, mantém íntegro o que é velado, mas em superfície lisa, sobre a qual se deixam grafados os símbolos dessa magia. O espaço entre a primeira e a segunda estrofe corresponde à metade do existente entre a segunda e terceira, intercalados por um zeugma que omite o que não se quer mostrar. É de se reparar que o único verbo em estado de ação é o “dispensar”, que anuncia o contrário do que isolado significaria.

O que dá peso ao poema são os substantivos: chave-tetra / segredo / carne; é neles que se deposita o conteúdo, fruto da ação que o primeiro (chave-tetra) provoca, e que tem reações (gravado/dentado), ao se materializar em produto ([em minha] carne). Ler é uma viagem com itinerários, paradas, locais de observação. Por isso, sempre que o faço invoco Drummond para penetrar nesse reino das palavras; parece até que ele está aqui, ao meu lado, e me pergunta: “Trouxeste a chave?”.

 

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix; EdUSP, 1977.

ERBER, Laura. A Retornada. Belo Horizonte: Relicário, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz. Corpo e cabelo como símbolos da identida negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

KAUR, Rupi. outros jeitos de usar a boca. São Paulo: Planeta, 2017.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos Literários. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

SANCHO Isabela. A depressão tem sete andares e um elevador. Guaratinguetá, SP: Penalux, 2019.

SOBRAL, Cristiane. Dona dos ventos. São Paulo: Patuá, 2019.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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