D. Flora vivia com as lidas do lar. Dona de casa, sem filhos, casada há trinta e dois anos com seu Ermínio. Este, copeiro de repartição pública, trabalhava há bem mais de vinte e sete anos no tribunal de justiça do estado. De tanto conviver com procuradores e desembargadores, já se considerava um conhecedor profundo das leis.
Sua vida era simples, todos os dias da semana a mesma rotina de sempre. Acordava as cinco e meia. Tomava um banho, vestia o uniforme de trabalho, um café com pão e margarina, pois seu minguado salário não lhe permitia mais do que isso, tomava a condução, que diga-se de passagem, era bem precária, e ia cumprir seu humilde destino.
Já no trabalho limitava-se a sua pequena função: lavar copos, lustrar bandejas e servir com zelo os aristocráticos senhores da lei.
Entrava mudo e saia calado das salas elegantes. Considerava seu trabalho ilustre, afinal vivia cercado de pessoas estudadas, letradas, homens superiores, cuja importância era inquestionável.
A aparente calma de seu cotidiano não lhe permitia ver a grande distância entre seu universo e o daquelas pessoas as quais servia.
No dia dez de julho, recebeu um novo uniforme. Calça e camisa pólo. Mas como o antigo ainda estava em boas condições guardou o novo no armário pra usá-lo em outra ocasião.
Lá ficou a camisa pólo, dobrada entre as outras, de longo uso. Dona Flora, arrumando o armário, separou algumas peças já velhas e gastas para outras finalidades como fazer delas pano de pó.
Ocorre que junto a estas, velhas e gastas, foi por acaso a camisa nova. D. Flora, a quem o tempo desgastara a vista, usou justamente esta como pano de chão.
Nesses termos e após conferir e achar de acordo declaro que recebi o item relacionado e que o mesmo encontra-se em perfeita condição bem como recebi as orientações quanto ao uso correto, higienização, conservação e finalidade dos mesmos.”
Seguidos da sua assinatura e a do chefe de setor.
Mil coisas passaram pela sua cabeça nessa hora. E a certeza de que havia incorrido em grave delito. Ele, tão zeloso e responsável com o patrimônio público, acabara de corromper a finalidade do objeto a ele confiado. Não teria perdão, isso era claro, seria julgado, preso e condenado. A pressão subiu, um zunido forte tomou conta do seu cérebro. Sem nada entender d. Flora viu o marido estatelar- se no chão, imóvel.
Achou que tinha morrido. Mas não. Foi socorrido e levado as pressas ao pronto socorro. Perdeu a solenidade tao importante, mas por sorte não ficou sequelado.
D. Flora cheia de culpa, marcou uma audiência com o então presidente do tribunal, a fim de justificar o ocorrido. Este recebeu-a desconfiado. Não entendia o motivo de tamanha aflição nem o porque da visita. Na verdade nem sequer sabia o nome do funcionário em questão.
D. Flora atarantada atropelava-se em explicações. Percebendo que o Desembargador não entendia exatamente o que viera fazer ali, tirou da sacola de plástico que trazia nas mãos a camisa polo encardida e torcida cheirando pinho sol e estendendo-a sobre a mesa impecável da presidência, balbuciou: – “A culpa foi minha doutor, eu não sabia que a camisa era do senhor”.
Um conto certeiro, hilariante, contagiante, gostoso de ler.