“O fogo parece que brinca com a gente”, descreve o fotógrafo José Medeiros sobre as tentativas de apagar os incêndios que acometem o Pantanal de Mato Grosso há mais de dois meses. Na segunda-feira, 14 de setembro, o governo estadual rompeu o silêncio sepulcral e anunciou estado de calamidade pública. Uma tentativa de responder às pressões que surgem, após a sociedade e a mídia se mobilizarem (tardiamente, diga-se de passagem) para dar visibilidade à maior catástrofe ambiental da história do Pantanal. O mesmo jogo para a plateia de sempre, afinal, o fogo já consumiu quase 20% de todo o bioma – que até então guardava uma das maiores biodiversidades de todo o planeta.
Zé está com a voz cansada, mas atira as palavras com pressa, com velocidade, com urgência. Ele sabe que a situação é extremamente grave. Essas palavras duras, apressadas, quase que despejadas com violência, dão conta do tamanho da tragédia. “Eu nem sei o que te dizer. Eu nunca vi algo assim. O que eu sinto é que estou fotografando uma zona de guerra”. Do outro lado da linha a sua angústia é quase palpável e meu coração fica ainda mais pesaroso.
Em junho, quando foi ao Pantanal para trabalhar no filme “Lufada de vida”, Zé percebeu o fogo ainda distante, em Mato Grosso do Sul. Nessa ocasião, ficou na base de pesquisa da ONG Pantera, que cuida das onças na região do Parque Estadual Encontro das Águas: “A Pantera estava numa ação de arrecadar cestas básicas para os ribeirinhos. Com o turismo parado, as pessoas não tinham mais recurso, não tinham mais renda e nem o que comer. Começamos uma ação e arrecadamos alimentos. Voltei para Cuiabá e depois retornei ao Pantanal”, conta.
De barco, Zé participa da ação para levar os alimentos arrecadados até a Barra do São Lourenço, onde o Rio Cuiabá encontra o Rio Paraguai. “Lá eu me deparei com as pessoas contando que o fogo acabou com tudo, com toda a lavoura. As pessoas estavam sem comer. Na volta, o fogo já estava sem controle. Isso foi no final de julho, quando fotografei os bichos mortos, e então começou essa queimada grande. Quando voltei da viagem, comecei a ver o desespero de pessoas preocupadas, amigos. Já estava essa coisa do fogo descontrolado e começou toda uma ação de tentar apagar; mas é uma coisa insana, ninguém consegue apagar o fogo”, explica.
O sentimento é de impotência. “A gente é uma formiguinha nesse processo. A gente não dorme lá. É a madrugada toda tentando apagar fogo, trabalhando. Dei um suporte com o drone, era umas 9h, subi o equipamento para ver a área queimando e monitorar. O fogo estava na beira do rio. Abrimos um aceiro (desbaste de um terreno para impedir a propagação de incêndios) e o fogo pulou toda a extensão do rio para o outro lado, queimou toda a margem, pulou de volta e queimou o aceiro”, narra.
“É surreal. Apaga o fogo e em seguida vai para outro combate, quando você olha, o fogo voltou para onde você tinha acabado de apagar. Eu não sei o que está acontecendo, não sei se é para abrir os olhos e pensar no futuro, nas próximas gerações… a pandemia já faz refletir sobre isso e a gente acha que nada mais vai acontecer, mas vem isso. Não é só o Pantanal, é o Cerrado, a Amazônia… o mundo está queimando”, continua.
Para José Medeiros, diante da inércia e da omissão dos governos, os pantaneiros são os verdadeiros heróis. “São eles que estão à frente. São heróis da resistência. É um ano muito seco e querem achar culpados. Os culpados são os mesmos de sempre. É o sistema. O ICMBio e Ibama estão com as verbas cortadas. São os nossos governantes, que agora começam a ver o Pantanal. Já está queimando há quase dois meses. Tanto bicho que morreu. É uma tristeza. Um jacaré, que eu fotografei, morreu de boca aberta, pedindo socorro”.
Suas fotografias possuem o poder de provocar emoção: um misto de sentimentos que nos envolve, fazendo com que nos transportemos para aquele momento por meio do seu olhar. “É onde o triste fica belo. Como consigo tocar as pessoas com o meu trabalho? Qual a minha função como documentarista? Não só como documentarista, mas o que o José Medeiros vai deixar para essa história? Tem gente no Pantanal, bicho, fauna, flora, e eu estou lá retratando uma história. Estou fazendo isso para daqui 100 anos, para deixar um registro de uma das coisas mais terríveis que aconteceram”, avalia.
O fogo queima e arde com tamanha força que Zé conta ser impossível chegar a 30 metros de proximidade. “É um apocalipse. Agora estão vindo os aviões com água, mas não adianta mais. Artistas e fotógrafos estão se mobilizando, ONGs fazendo campanha. Mas é preciso uma ação para treinar as pessoas para se ter brigadistas voluntários nessa época de queimada, para que as pessoas fiquem à disposição de combate direto ao fogo”, observa.
Zé Medeiros acredita que só a chuva pode salvar a crítica situação do Pantanal, mas a previsão é somente para outubro. Enquanto isso, são mais 20 dias queimando. “Eu estou imerso lá. É um sentimento de derrota. São 24 horas trabalhando e as pessoas não dormem. Seu Tutu, um velhinho de 79 anos, e a Glória sua esposa, estão no meio, e ele queimou o pé tentando ajudar os brigadistas do ICMBio. Só sobrou a casa dele. É uma devastação todo dia, não tem uma vitória. O fogo ganha todas as vezes”, finaliza.
*As imagens desta reportagem fazem parte da série “Pantanal: Céu e inferno em terras alagadas” do fotógrafo José Medeiros.
Estou estarrecida com o sofrimento do Pantanal. E agradeço aos profissionais que estão inclusive coletando material fotográfico para o futuro. Nasci antes da divisão do Estado, portanto, tenho espírito de pertencimento do Pantanal Sul e Norte.
Desejo sucesso, paz e serenidade!