O processo de escrita, por si só, é criativo. Ou não. Em que medida a criatividade dá o tom do construto? A busca pela novidade, pela maneira de se distanciar da tradição e do conservadorismo nas letras têm se popularizado em todo o território nacional. Nunca se viu na história deste país tantos livros com nomes engraçados, diferentes, que levam o leitor a percorrer caminhos tortuosos de significados abstratos, surpreendentes. Os limites da imaginação são infinitos e o leitor sabe disso tanto quanto o escriba.
Escritores especializam-se na construção de oficinas literárias, disputando espaço com os críticos, enraizando na academia seu modus operandi. Muitos deles mais propensos ao processo ensino/aprendizagem do que a prática ficcional, diga-se de passagem. Mas há alguns que, sabedores dos caminhos para se chegar a algum lugar (seja ele qual for), tornam-se especialistas na arte de libertar o artista preso dentro de nós. Os nós. Luis Antonio de Assis Brasil, Raimundo Carrero e João Silvério Trevisan, por exemplo, trilham esse caminho há bastante tempo, são verdadeiros decanos no assunto. Mas há muita gente boa colhendo frutos desse trabalho. Marcelino Freire é um deles.
Se um dia tivesse imaginado essa história, diriam que não é verdade, toda peça de teatro, é bom que se fale, tem de prezar por uma coerência interna, uma obediência a regras específicas, respeitar, sem vacilar, a verossimilhança (FREIRE, 2013, p. 51).
As aventuras são entremeadas por fabulações diversas. O mundo além-palco neste reino imaginário povoa as páginas em branco que vão recebendo a mancha da tinta, impregnando a “Capa de couro bovino, espada de fêmur, saiote de cóccix e uma máscara natural, a minha cara borrada de carvão…” (idem, p. 26). Cai o pano e uma pós-epígrafe entorna o caldo da mistura: “Nossos ossos/esperam os vossos” (idem, p. 127).
Em “Vestido longo” lembro-me de Nelson Rodrigues ao me deparar com “A miséria no Brasil, puta que o pariu, é pornográfica. De nascença. Todo mundo nu” (Freire, 2015, p. 25). Mas ao mesmo tempo em que estamos diante de um universo ficcional, também encontramos referências para compreender a obra como metalinguística, como extensão do universo da escrita criativa do qual Marcelino é tributário e regente, permanente escola de literatura. De sua batuta surgem inúmeros escritores que coabitam seu universo criativo. Gisele Mirabai, Aline Bei e um sem número de expoentes literários reforçam esta assertiva.
A verdade é esta. Essa imagem me pertence faz tempo. Escrever é organizar os sentimentos perdidos. Já creio que posso contar.
– Vamos casar?
– O quê?
– Eu e você, feito homem e mulher.
– Na igreja?
– É pecado.
– Deus não precisa saber.
(Idem, p. 76).
O fragmento acima é do conto “União Civil”, emblemática narrativa que também apresenta dicas para a escrita em prosa, de onde extraio também o que se segue:
– Um conto não nasce na hora em que a gente escreve, na hora em que a gente está escrevendo. Não nasce quando a gente acaba o conto, põe o ponto final. A impressão que eu tenho é que um conto nasce em algum ponto da vida da gente. Ele fica lá, congelado, esperando que algo o acorde, algo o provoque, entende? (Idem, p. 86-7).
O processo de escrita, de qualquer escrita, é como um mar e mar em rebentação: onda atrás de cada onda o escriba escorrega sua prancha pela superfície salgada daquele corpo. As imagens nostálgicas de um Recife habitado transpassam as páginas de seu “Rasif”, em que pergunta: “Em que mundo vão crescer as nossas crianças?” (Freire, 2008, p. 38). E algumas páginas mais a frente me parece clara a resposta, em um tom mais conclusivo:
Toda criança quer um revólver para brincar. Matar os amigos e correr. Matar os índios e os ETs. Matar gente ruim (Idem, p. 41).
As ilustrações de Manu Maltez são um caso a parte. A preciosidade das insinuações captadas do texto transformam-se em sombras que parecem proteger os pensamentos obscuros por dentro de um traço que provoca vertigem. E mesmo as criações mais prosaicas, dentro do universo chauvinista que observo vizinho ao texto, trazem um tom de maresia onde o mar arrebenta, a praia. E o chá servido por entre as sombras me provoca leve riso quando me pega surpreso entre os convivas:
Fica chamando pelo Machado. O outro pelos anjos do Augusto. Lembra? Credo! Sei não. Desta semana não ele não passa. Não passa. Uma pena! Lamentável! Vai deixar uma grande obra. O quê? Eu disse que ele vai deixar uma grande obra. É. No meio do caminho tinha uma minhoca. E agora? Hã? E agora, o que a gente vai fazer? Comer. Hum, hum. E beber. O que tem de gente querendo entrar. É criticam, criticam. Mas querem participar. Hã? Deste nosso chá. De quê? De rosas. Chá de quê? De rosas. Todo mundo já está de olho na cadeira dele. Na cadeira dele. O quê? Eu disse cadeira de rodas (idem, p. 83).
REFERÊNCIAS
FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Nossos Ossos. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2013.
Amar é crime. Rio de Janeiro: Record, 2015.