Por Wellinton Cunha*

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Ângela deu por si na cama transformada na sua própria mãe. Às seis, nem mesmo o despertador acordou o marido Messias. Sentou-se na cama e o desligou, escondeu o rosto com as mãos e suspirou profundamente, levantando-se para o dia que ia começar na padaria.

Logo, a mulher de cinquenta anos caminhava pensativa e pesada pela ladeira segurando o pacote de pães. “Deixo ou não deixo? Mas não é seguro… ela vai me odiar… ela já me odeia de qualquer forma… eu era assim como ela… deixo ou não deixo…”. Enquanto arrumava a mesa do café, distraída com sua decisão, a filha Taís entrou com seus 16 anos, reticente e ansiosa.  Ângela sentiu sua presença e a encarou, mas logo desviou o olhar. De costas, a mãe continuou arrumando a mesa, quando a filha rompeu o silêncio:

– E então?

– Bom dia, querida.

– Bom dia… e então?

– Filha… seu pai e eu conversamos e achamos melhor que você não vá.

– Mas, mãe, todo mundo vai…

– Preciso mesmo dizer que você não é todo mundo?

Tais sentou-se na cadeira e começou a chorar.

– Tá decidido.

– Mãe, escuta…

– A estrada pra Chapada é perigosa…

– Mas, mãe…

– … além do que, apesar do César ser maior de idade, ele não é exatamente o que se possa chamar de adulto…

– Manhê!

– … e você ainda é muito nova.

– Eu te odeio.

– Me dói, mas um dia você vai me entender.

Como que para ferir a mãe, a filha repetiu pausadamente: ‘”Eu. Te. Odeio.”

– É para o seu bem – falou inutilmente, enquanto Taís saiu dramática e abruptamente, esbarrando em João que entrava na minúscula cozinha.

– Sua vaca! Olha por onde anda.

– João!

Pensou em dar um sermão no filho mais novo. Mas do que adiantaria? Havia se passado quinze segundos do esbarrão e ele já havia esquecido do ocorrido da mesma forma que esqueceria a lição. O filho deu um abraço frio na mãe e lhe desejou feliz aniversário, Ângela abraçou-o como a um saco de batatas.

– Mãe, eu preciso mesmo ir tomar injeção amanhã?

– É para o seu bem, porra!

***

Angela, já com a roupa mais formal de serviço, terminava de lavar as louças do café-da-manhã. Meio apressada, parou de repente quando viu seu reflexo em um prato de alumínio. Olhando-se, ela percebeu que seu rosto se encaixava perfeitamente na parte funda do objeto. Começou a chorar baixinho. Lembrando-se do poema, não se reconheceu assim tão triste e magra, com olhos tão vazios e coração que nem se mostra. “Em que espelho ficou perdida a minha face?”, indagou-se.

Logo sacudiu a cabeça, enxugou as lágrimas e terminou de lavar o prato. Não havia tempo para Cecília Meirelles. Afinal, os filhos estavam esperando no carro para ir à escola, e ela tinha que comprar o presente dos sogros, e aproveitaria para comprar cuecas novas para o marido que estava precisando, mas antes, havia aquelas provas que a esperavam na sala dos professores e não iam se corrigir sozinhas.

Pegou a pasta e as chaves do carro sobre a mesa sem perceber que a torneira da pia gotejava.

*Wellinton Cunha é jornalista, cinéfilo, roteirista, cafecólotra e advogado 
do Woody Allen.

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