Fruto de um diretor conhecido por seu cinema passional repleto de violência, vingança, traições e amores proibidos, Park Chan Wook – responsável por Oldboy, Segredos de Sangue e Sede de Sangue – “A Criada”, seu mais recente filme, é um espetáculo em todos os sentidos, triunfando como seu melhor trabalho.
Adaptado do livro “Na Ponta dos Dedos” de Sarah Waters – escritora famosa por seus trabalhos com protagonistas lésbicas, situadas na era Vitoriana – A história roteirizada por Chan Wook e Seo-kyeong Jeong , sua parceira de roteiro em quase todos os seus trabalhos, troca Londres pela Coréia ocupada pelo Japão e insere já em seu cenário o contexto de dominação e liberdade.
Na trama, o golpista que se apresenta como “Conde” Fujiwara está determinado a roubar a herança da senhorita Hideko, uma órfã que vivera toda sua vida isolada em uma mansão por seu perverso tio. Para impressionar Hideko e fazê-la se apaixonar pelo Conde, Fujiwara coloca Sook-Hee, a filha de uma famosa ladra, para trabalhar como a criada de sua pretendente, esperando que ela possa induzir sua ama ao casamento, mas tudo muda de perspectiva quando Sook-Hee e Hideko começam a nutrir sentimentos uma pela outra.
Dominada e reprimida por seu tio durante toda sua vida, Hideko é frágil e inocente. Repleta de vontades e desconectada da realidade, a mansão que mistura estilos ingleses e japoneses se tornara seu universo, seu labirinto e sua prisão. É na amizade com Sook-Hee e em suas histórias sobre o mundo exterior que Hideko descobre os prazeres da vida. Desprovida de qualquer luxo senão a sagacidade que a vida nas ruas lhe proporcionara, Sook-Hee por sua vez vê em sua ama uma boneca de luxo, um presente, um mimo somente seu pela primeira vez em sua amargurada vida.
Apesar das razões inicialmente egoístas, as duas descobrem em sua relação a parceria e a força necessária para se libertar de seus mundos opressores. O tio e o Conde, representações físicas de uma opressão intangível mas sempre presente, são peças em um jogo de sedução e traição onde é difícil decidir quem está enganando quem. Se aproveitando de várias artimanhas de narrativa e roteiro, Chan Wook muda o ponto de vista da história ao longo do filme, alternando entre personagens para recontar diversas versões da mesma trama, enganando e maravilhando o espectador a cada reviravolta.
Aliado a uma cinematografia estonteante e uma intensa trilha sonora muito bem orquestrada por Yeong-wook Jo, a história cheia de sexo, volúpia e erotismo, consegue com classe expressar sensualidade sem vulgarizar ou transformar seu filme em pura pornografia. Aqui, a pornografia e a exposição do corpo é desapropriada do olhar masculino e utilizada como arma de libertação por Hideko e Sook-Hee. É no sexo que elas sobrepujam suas rédeas e quebram as amarras de suas posições sociais. Despidas de suas fantasias – Hideko não é uma boneca, e Sook-Hee não é uma empregada – as duas descobrem-se como mulheres, esbanjando paixão e vida em suas veias.
“O que os homens querem à noite?” Questiona Hideko inocentemente. É na busca para entender os homens à sua volta que ela acaba por entender as mulheres. Seja a cruel governanta, ex mulher de seu tio que aceitara viver como empregada de seu antigo marido, ou a jovem ladra que se sujeitara ao esquema sórdido que a colocaria num hospício e tomaria sua herança, Hideko compreende a parceria que existe ao compartilhar do mesmo sofrimento, de viver o mesmo tormento. Editado de maneira inteligente e sutil, os 137 minutos do longa correm na frente dos olhos, apresentando em suas cenas o duelo entre a beleza sensual da descoberta e a dor do isolamento e opressão emocional.
Entrando para a galeria de mulheres sagazes do cinema de Chan Wook, Hideko e Sook-He em nada deixam a desejar comparadas a injustiçada professora de Lady Vengeance, a sequestradora imprudente de Mr. Vengance, a carinhosa Mi-do de Oldboy ou mesmo a inescrupulosa vampira Tae-Ju de Sede de Sangue. Todas mulheres reprimidas de alguma maneira pelos homens ao seu redor e que encontram em sua natureza feminina o poder necessário para quebrarem seus ciclos opressores. “Dor é prazer” diz uma placa pendurada na casa, e prazer é libertação, responde o filme de Chan Wook.
Filme que marca seu retorno ao cinema coreano após se aventurar no ocidente com Segredos de Sangue – filme estrelado por Nicole Kidman e Mia Wasikowska sobre uma relação problemática entre mãe e filha – o diretor coreano e sua co-roteirista demonstram a capacidade de dosar em seus textos a presença masculina e feminina. Em seu trabalho conjunto onde cada pedaço da cena é escrito lado a lado, o roteiro de “A Criada” se livra de pender demais para um único ponto de vista. Competente não só como uma história de libertação e um tórrido romance, o filme também consegue ser um interessante suspense repleto de reviravoltas, um filme artístico de nível invejável e impressiona na qualidade cinematográfica, agradando inclusive os amantes dos detalhes técnicos.
Ainda sim um filme de autor, com sua identidade específica e suas idiossincrasias já famosas aos fãs de Chan Wook, a história de traição passional e desejo ganha ares atemporais com o subtexto quase político neste momento de libertação de antigos paradigmas no qual estamos vivendo nas artes e no cinema. Elogiado pela autora Sarah Waters , o filme para ela fora “muito fiel à ideia de que as mulheres estão se apropriando de uma tradição extremamente masculina de erotismo e pornografia para encontrar seu próprio caminho para explorar seus desejos”.
Com estrondosa aprovação da crítica e da pequena platéia que teve acesso ao filme – ele foi lançado em um minúsculo circuito de cinemas fora dos festivais – a erótica história de libertação feminina de Chan Wook é cinema da melhor qualidade, e merece ser visto e revisitado diversas vezes para apreciar todo o seu valor. Capaz de entreter e nos prender na cadeira, “A Criada” nos amarra na trama nos transporta para suas emoções.