antes as histórias eram contadas em diferentes mídias. celulares, computadores, televisores, sites, revistas, livros, rádio. histórias que chegavam em questão de segundos, percorrendo longas distâncias e conectando as pessoas em todo o mundo. agora, contamos histórias dentro de nossas próprias mentes. até os tradicionais contadores de histórias não podem mais recorrer à oralidade. é preciso silêncio, se mover em silêncio, dentro das normas estipuladas em uma sociedade que se entranhou em si mesma. da janela do meu apartamento escuto o barulho de um enxame de abelhas. mas estou em são paulo, aquela que era a maior cidade, hoje é uma ilha de concreto. não há abelhas sobrevoando os céus… são os drones de vigilância que cruzam os ares a monitorar os cidadãos em suas residências. no começo do ano de 2020 a humanidade não poderia conceber situação tão distópica. quando a crise da covid-19 começou, muitos não acreditaram no potencial da doença, mas a sua transmissão acelerada fez as coisas mudarem mais rápido do que podíamos assimilar. ainda seguíamos trabalhando nas estações adaptadas que criamos em nossas casas, ainda era preciso produzir, quando fomos atingidos por novos decretos dos governos. depois do isolamento social, veio o lockdown. para sair às ruas precisávamos estar munidos de autorizações especiais, emitidas em sites específicos, criados para atender a demanda da população, que pressionava para voltar a dita normalidade… não aconteceu. com o lockdown, muitas pessoas foram presas e encaminhadas para as novas prisões, emergencialmente abertas para tirar a liberdade daqueles que se recusavam a perder a sua liberdade de ir e vir. as estações de trabalho adaptadas se tornaram verdadeiras prisões. a partir daquele dia, tínhamos que ficar em nossas casas, ou onde estávamos, não podíamos mais sair. os drones garantiam o monitoramento contínuo de todos os cidadãos e projetavam em nossas mentes aquele barulho de enxame de abelhas ensurdecedor. o básico dos alimentos nos era deixado em nossas janelas por outros drones, os chamados drones de abastecimento. assim como remédios e outras necessidades urgentes. olhar pela janela era ver o vislumbre de um mundo que não existe mais… as ruas continuam ali, mas estão inertes, seu uso foi abolido da rotina de todos, ou pelo menos, de quase todos. penso no último dia que fui fazer compras no mercado. não imaginaria que ficaria mais de 365 dias sem sair de onde estou. estou só. levaram os animais de estimação, sem maiores explicações… penso nas minhas gatas, será que estão vivas? bem alimentadas? será que um dia nos veremos novamente?
pensamos que este era só mais um vírus de gripe, ainda que com uma letalidade maior, realmente acreditamos que a cura seria descoberta, ou ao menos tratamentos com remédios seriam eficazes. não contávamos com as inúmeras mutações do vírus. não imaginávamos que cada pessoa que adquirisse o vírus o transformaria em um vírus novo, com um potencial de se modificar a cada corpo infectado, fazendo com que fosse impossível de prever seu comportamento ou encontrar uma maneira eficaz de liquidá-lo. algumas pessoas davam a sorte de não apresentar sintomas, mas as que apresentavam, precisavam dos hospitais para respirar. quando as notícias ainda passavam e existiam jornais, pensamos que luvas e máscaras nos protegeriam, mas ir aos mesmos hospitais era a garantia de contrair o vírus em suas infinidades de mutações… era escolher entre morrer em casa ou morrer no hospital. um número deveria ser acionado em caso de emergência por infecção ao vírus, e logo, drones de resgate chegavam para levar aquela pessoa… mas não sabíamos mais se existiam vagas nos hospitais, ou se ainda existiam hospitais… o certo era que quem ligou para aquele número, nunca mais retornou. sei disso. já vimos acontecer antes nesse prédio onde estou.