penso que aqui, lá pela década de 70/80, era um hotel. o apartamento é pequeno, por volta de 35 metros quadrados, equipado com uma cozinha, um banheiro e uma varanda. tive sorte de estar aqui quando o lockdown chegou. não sabemos o que aconteceu com quem estava na rua… se puderam voltar para suas casas, se foram levados para as novas prisões, ou hospitais para serem testados… separaram os saudáveis dos doentes… imagino que sim, porque desde que tudo começou, não apresentei nenhum sintoma da doença. se seu corpo muda de temperatura, os drones conseguem detectar escaneando todos os prédios, de 15 em 15 minutos. se a sua temperatura corporal muda, se você tosse ou espirra, um drone chega rapidamente para testá-lo. se deu positivo para o vírus é retirado do local, que é imediatamente desinfectado, e todos os outros moradores são testados. dizem que o vírus pode ficar voando nos ares durante algumas horas, até se agarrar a alguma partícula e permanecer vivo por dias… por isso ninguém mais pode sair… para sair é preciso requisitar essa autorização especial. eu mesma nunca consegui. solicito uma ida ao médico para examinar meu ouvido, sinto um chiado constante que fica insuportável com o barulho do enxame de abelhas… até agora não obtive resposta… afirmam que a saúde pública está voltada para atender aos doentes, mas realmente não temos como saber o que acontece lá fora.
um dia, depois de dois meses sem autorização para sair de nossas casas, uma movimentação na rua começou a surgir, ouvi gritos vindo das outras janelas e fui até a varanda… uma pessoa corria na rua, perseguida pelos drones de vigilância que acionavam alarmes e sirenes, avisando que se não parasse, seria impedida. não tenho como saber o que esse impedimento significa. depois de alguns minutos, o som desapareceu… não havia mais o enxame de abelhas, nem o trepidar de pés desesperados avançando pelo chão, nem sirenes ou alarmes, nem vozes robóticas mandando indivíduos pararem para não serem impedidos… seja lá o que isso significa.
meu trabalho não é mais o mesmo. eu costumava ser jornalista, escritora, poeta… agora conto a quantidade de alimentos para ser distribuída nas zonas 99 até 120. preciso verificar os pacotes recebidos e os que serão encaminhados. nem todas as semanas temos os mesmos produtos… as vezes temos arroz, nem sempre temos feijão, mas temos muitos alimentos ultra industrializados, como macarrões instantâneos, bolachas e sucos adocicados. não recebemos verduras frescas… recebemos uma ração humana como base alimentícia, três pacotes de macarrão instantâneo, um pacote de bolacha, dois sucos de alguma substância não identificada. se as colheitas de arroz e feijão podem abastecer o mercado interno estão na cesta, mas são alimentos cada vez mais escassos… as minhas últimas reservas estão acabando. como muito pouco e durmo mal, trabalho mais de 10 horas por dia, conferindo estoques e entregas, recebendo os pedidos e analisando.. é um trabalho que não tem fim. não sei o que outros fazem, mas acredito que quase o mesmo que eu… só que para outras demandas e áreas.
conto essa história na minha cabeça para não me esquecer do mundo em que vivi… andava a pé todos os dias na rua, respirando aquele ar poluído, mas era livre, escutava música nos meus fones de ouvido, chegava ao trabalho, lia notícias, falava com as pessoas que eu amo, sabia o que acontecia lá do outro lado do globo, comprava pão fresco na padaria, tomava café, via filmes, comprava livros em sebos, almoçava e jantava em lugares diferentes, e valorizava uma boa comida no meu fogão… a gente se apaixonava. e podia se tocar. sinto falta do toque, de outras peles que não a minha, de olhar fundo em outros olhos que não os meus, de dividir silêncios e risadas… sinto falta de tanta coisa que não posso descrever…