Era 28 de fevereiro. As luzes do supermercado brilhavam tanto que a moça entrou de óculos escuros para não ofuscar a vista.
-“Quero flores !” disse ela, pegando um vaso de margaridas singelas. Flores festivas. Alegres. Olhou para a banca com mais atenção e viu  um pequenino vaso de pimenteira. Carregado de pimentas vermelhas e algumas florinhas brotando entre as folhas verdes.
Levou- o consigo junto as margaridas festivas. -” Ó pé de pimenta ! Me trará sorte e proteção ” disse então à pequena planta. Ao chegar em casa colocou-as na sala onde permaneceram cerca de sete dias. As margaridas murcharam e foram descartadas no lixo. Triste destino das flores murchas.
Os dias se passaram. Certa manhã a moça percebeu que o pé de pimenta aparentava um aspecto abatido. Então pensou ” um pouco de vida ao ar livre lhe fará bem. ”  E imediatamente carregou-o pra fora e o colocou entre os amarantos e as babosas do quintal.
A pequena planta estremeceu ao receber sobre a superfície das folhas os raios do sol. Era seu primeiro contato com a luz solar. Crescera confinada numa estufa climatizada, geneticamente modificada para ser objeto de adorno numa sala de estar da classe média quase feliz.
Aquele contato com o sol e o ar e o mundo exterior, o céu azul de nuvens brancas, o canto dos pássaros na luz da manhã, aquele momento despertou na pimenteira um estranho sentimento de lembranças atávicas. Num tempo distante havia sido talvez uma planta nascida na horta, adubada com esterco de gado e restos orgânicos da cozinha.
Em que altura da sua trajetória havia se transformado naquela pimenteira quase fake, sem nem sequer conhecer a luz do sol?  Lembrava-se bem dos dias vividos na estufa em que nascera. Das luzes sempre ligadas e do cheiro dos defensivos e outras químicas pulverizadas no ambiente. Do pânico de ser, de repente, encaixotada e transportada num compartimento escuro até chegar à gôndola do supermercado, onde o meio asséptico climatizado a 27 graus, iluminado 20 horas por dia não tinha nada de muito diferente da estufa de onde viera.
Mas agora, sentindo a terra de verdade em suas raízes a pimenteira se deu conta de quem realmente era. Uma intensa sensação de vida nunca antes experimentada . Podia viver as horas do dia e da noite e usufruir do vento, da chuva, e da luz do sol e das estrelas. Conheceu a lua que estava cheia. Deparou-se com uma lagarta que experimentou o sabor de suas folhas  mas achou ardido e desistiu de comê-las.
Estava a cada dia mais forte cheia de seiva e clorofila.
Passado um tempo nem lembrava-se mais dos tempos vividos no artifício da indústria. Ao seu lado um bonsai  de jabuticaba esticava os frágeis raminhos. Tal como a pimenteira, ele também havia nascido numa estufa, e por mais que crescesse, jamais seria maior que um pé de couve e talvez jamais chegasse a produzir frutos.
Isso aconteceu quando as plantas deixaram de ser plantas para serem objetos e mercadorias.
Ainda assim, percebe-se que não perderam a alma. Penso que, se por desventura as plantas perderem a alma, aí então, tudo estará perdido.

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