Por Rodrigo Brito*

Assisti à peça O Boca do Inferno no dia 28 de janeiro deste ano, no último dia do espetáculo, no Teatro Café Pequeno. Foi no dia em que eu visitei o Rio de Janeiro pela primeira vez, com a promessa de vivenciar as melhores opções culturais possíveis para aquela data. Eu havia comprado os ingressos antecipadamente, cheguei e fui muito bem recebido pela cidade: iria assistir uma peça inspirada na vida de Gregório de Matos (1636-1696), poeta ícone do barroco da Literatura Brasileira.

O impacto começou logo quando entrei no Teatro Café Pequeno, pois o local tem uma estrutura única para o público: os bancos não são almofadados, são cadeiras de madeira e, no corredor, havia uma cachaça disponível para degustação, que por sinal estava deliciosa. Enfim, feitas essas considerações, estava pronto para aguardar o início do espetáculo.

Vi um homem em conflito com a igreja e com os políticos. Na primeira cena, é entendível o motivo que levou o poeta a ser apelidado de “boca do inferno”, alcunha que alegrou o escritor em ascensão e contribuiu para o surgimento do mito que se tornou. Ao lado de Ana (a prostituta que se apaixonou pelo poeta) e Chico (o melhor amigo e companheiro de bebida do vate), Gregório oferece momentos de humor, lirismo, tragédia e sensualidade.

As declamações dos poemas foram todas excelentes. O roteiro foi muito bem construído e o elenco foi sensacional. Houve momentos do diálogo em que os personagens interpretavam a fala um do outro. Foi algo lindo de se ver, viver e sentir.

A caminhada com Ana, Chico e Gregório, na Bahia do século XVII, foi repleta de poesia e de críticas, não só aos poderes que visam controlar o corpo, sobretudo ao próprio personagem principal que, mesmo criticando a igreja, não percebia que reproduzia valores do cristianismo. Sob essa égide, Ana foi crucial para mostrar o outro lado de Gregório. Fiquei, confesso, chocado quando Gregório disse para Ana que “Chico não valia um peido de um jumento”, pois foi uma das primeiras falas que mostrou as suas ambiguidades. A partir disso, as cenas foram construídas com as contradições do poeta que denunciava, mas que também praticava a opressão.

A peça é ótima, toda a equipe está de parabéns. Eu a assistiria novamente e espero que seja em uma apresentação em Mato Grosso. O único ponto negativo que eu apresento é que os bancos eram desconfortáveis, tanto que, quando a peça se aproximava do final, eu só pensava em me livrar logo daquela cadeira. O local foi interessante, o público pôde assistir bebendo cachaça ou cerveja, porém é impossível não considerar o desconforto dos assentos.

Fora o desconforto, o espetáculo foi inesquecível! A experiência de viajar e ir direto ao teatro curtir a narrativa da vida de Gregório de Matos, ser recebido por uma cachaça e se deliciar com a poesia são fatores que me levam a lembrar da peça com um sorriso. Tudo foi poético nas cenas. Nota dez para o figurino, para a iluminação, para as músicas e para toda a equipe técnica!

O cenário é simples: uma mesa, cadeiras e um telão com manequins nus. Surpreende a complexidade da representação teatral em nos fazer imaginar vários ambientes utilizando quase nenhum objeto. As entonações das vozes enriqueciam as dramatizações das cenas. Se tratando de uma peça homenageando um poeta, nada mais justo que a linguagem seja a principal ferramenta de trabalho. O Boca do Inferno soube valorizar a materialidade das palavras, soube respeitar o tempo da poesia de Gregório, bem como toda a poética das cenas, deixando o espetáculo ser imperdível.

 

Rodrigo Brito é mestre em estudos de linguagem e autor de Solstício ao Luar (2013) 
e VISÕES (2015). www.twitter.com/rodrigoffbrito

 

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