Tenho pensado sobre a lógica que rege as premiações literárias. Biblioteca Nacional, Jabuti, os estaduais, o nobel. Ainda não li o livro de Jacques Fux, mas acabo de devorar “a história oral do desastre nuclear”, um dos livros da premiada escritora Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Nobel de 2015. Uma escrita forte, vigorosa, que faz tremer as bases humanitárias que constitui qualquer ser humano. Ou melhor, que deveria constituir. Um relato provocador de memória, uma busca pelo inconsciente coletivo caracterizador de uma tragédia, a derrocada do soviet, explorada por ela em outras obras.

Episódio marcante da história recente do povo soviético e das pulverizações do território, geradoras de outras nações, a tragédia nuclear de Chernobil deixa insepulta uma série de questões ligadas à identidade, à sobrevivência, à política energética de estado que sepultou vidas em nome de um progresso temeroso, fruto da onipresença política e cultural de mitos do século XX, de Lênin, Stálin, Kruchev, Ieltsin, até Gorbachev, liderança da abertura política e econômica ao mundo ocidental. “Incendiou-se a chama da eternidade” (Aleksiévitch, 2016, p. 42).

A radiação emitida pela explosão do reator de número quatro ocorreu um ano antes do acidente com o Césio, em Goiânia, tragédia que inaugurou esse tipo de acidente fora de instalações produtoras de energia. Lembro-me de como se exploraram as imagens que partiram de Goiás para o mundo, via satélite, e que nos revelavam o brilho chamativo que emanava dos elementos radioativos. A autora agora nos traz essa imagem ampliada em milhares de vezes, junto a afirmações como a de que “a radiação não se vê, não tem odor nem som” (idem, p. 44). Mas tem cores!

Não bastassem as mortes de humanos, houve o assassinato em massa a todo e qualquer animal, os vegetais eram arrancados e enterrados vivos. Batatas, árvores frutíferas e não frutíferas. Besouros e baratas, corças e lebres, todos com o mesmo valor de mercado. E pensar que “Houve um tempo em que os índios do México e mesmo as populações russas pré-cristãs pediam perdão aos animais e aos pássaros quando os sacrificavam para se alimentar” (idem, p. 47). O tom melancólico atravessa as trezentas e oitenta e três páginas da obra. Um livro que para muitos pode não ser literatura, uma vez que não é ficção, mas que nos conjuga verbos no presente para projetar um futuro pelo passado que herda. Passado de quem leu Tolstoi, Tchekov, e agora tem que se conformar com o fato de que “até as cerejeiras queimaram” (idem, p. 73).

A herança bárbara e grotesca que pelos próximos 900 anos, pelo menos, impedirá a normalidade da vida em um pedaço de chão de mais ou menos 4.200 quilômetros quadrados. Um baú de recordações vivas entocadas por dentro de um sarcófago, peça rara de engenharia militar que acoberta centenas de toneladas de plutônio, urânio e demais metais pesados e radioativos. Depoimentos transcritos por meio da metodologia da história oral, utilizada pela autora, são socializados ao leitor, que parece ouvir da própria voz de cada um dos personagens algumas confissões, como no fragmento a seguir: “Em casa, tirei toda a roupa que usei e joguei no lixo. Mas dei o barrete para o meu filho pequeno. De tanto que ele me pediu. Pegou e não largou mais. Depois de dois anos veio o diagnóstico: tumor no cérebro” (idem, p.108).

O contato precoce com a morte fez parte da vida de todas as crianças nascidas nos anos oitenta entre a Bielorrússia e a Ucrânia. Não houve sequer um ser humano que não fosse contagiado pelo discurso da desesperança, em contraste com o orgulho projetado em cada um pelos dirigentes partidários. Mas a verdade foi dura demais com a família de todos. “Na nossa aldeia deixaram três cemitérios: em um, descansam as pessoas, é o mais velho; em outro, os cachorros e gatos que tivemos de abandonar e que fuzilaram; no terceiro, as nossas casas” (idem, p. 228).

Alguns especialistas apontam o desastre nuclear como o início da derrocada do gigante soviético, cuja transformação já se desenhava pelas mãos de Gorbachev. A cegueira tecnológica que hoje é realidade vem se desenhando desde sempre, acelerada pela revolução industrial, coroada pela ascensão nazi-facista há cem anos, com resultados presentes na política e economia global. “Tchernóbil explodiu contra o fundo de um total despreparo da consciência e absoluta fé na técnica” (idem, p. 257). Líderes de uma massa com pouca consciência crítica têm surgido em todo o planeta, silenciosamente. O avanço de ideias retrógradas não tem partido, nação, mas é movido por uma ideologia, sim. “Compreendi que na vida as coisas mais terríveis ocorrem em silêncio e de forma natural” (idem, p. 263).

São absurdos os números do episódio. “Há pouco tempo publicaram nos jornais que em 1993 as mulheres da Bielorrússia fizeram 200 mil abortos. E a primeira causa era Tchernóbil” (idem, p. 264). Até hoje se sentem os efeitos da radiação sobre a gestação em mulheres da região, afinal, o poder de fogo da explosão equivale a uma “quantidade equivalente a 350 bombas atômicas como a que lançaram sobre Hiroshima.” (idem, p. 322). A guerra fria produziu inúmeros mitos, dividiu o mundo, reproduziu animosidades. “O homem inventou uma técnica para a qual ainda não está preparado (…). É possível dar uma pistola a uma criança? Nós somos crianças loucas” (idem, p. 327). Escritores são pessoas dotadas da capacidade de articulação de discursos que fazem com que se pense. Por mais fantasiosa que seja a obra de arte, é sabido que “não há fronteiras entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro (…). Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador” (idem, p. 373).

Svetlana tem a palavra a seu dispor. Faz do idioma um bunker. O construto de sua pena reverbera e transcende a fronteira entre a realidade e os sonhos. Ela sabe que “Os documentos são seres vivos, eles mudam junto conosco” (p. 375). A literatura coroa a amplitude do saber. A nós, cabe a expectativa de olhar para seus objetos com olhos marejados de quem acredita que ainda podemos fazer diferente.

REFERÊNCIA

 

 

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

 

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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