Há meses estou ensaiando para escrever sobre política. Mas os acontecimentos tem soterrado a palavra em mim. A avalanche de informações que me atinge rouba o som da minha voz, a potência da minha escrita. Sinto desespero, desamparo, desesperança. Assim como eu, outras milhões de pessoas sentem o mesmo. Tudo que leio ou escuto estão em dois opostos, um lado vocifera ódio que ecoa o seu próprio vazio. Outro lado descreve com lucidez o desenrolar da história e como ela se repete. Vejo desabafos que contam relatos sobre tempos que não deveriam nunca voltar. Vejo palavras e mais palavras que buscam sentido para narrar esse momento delicado da nossa história, da nossa breve democracia. Vejo a emoção de quem viveu os “tempos de chumbo” e o pavor nas histórias que compartilham. Esperamos pelo melhor em um cenário que parece mais distópico do que a ficção. Qualquer que seja o resultado, o monstro do fascismo e do autoritarismo foi alimentado, saiu do armário, onde sempre esteve escondido, esperando… à espreita do momento ideal para assumir suas vestes e confortavelmente devorar a sanidade de uma sociedade inteira.
Ontem me classifiquei como uma jornalista muda. Não consigo verbalizar. Mas eu preciso. Não vão roubar a minha voz. Não vão silenciar as minhas palavras. Muitas pessoas deram a vida para que nós pudéssemos ler, escrever, pensar, participar da construção de um país, de uma sociedade, de um conceito de cidadania. A história do Brasil sempre esteve cercada por esses personagens. Quando estourou a greve dos caminhoneiros, estava em viagem à trabalho na cidade de Presidente Epitácio. São 640 quilômetros de distância de São Paulo. Sete horas percorrendo as rodovias e confrontando cenas que me causaram arrepio: faixas e mais faixas pedindo intervenção militar. Caminhões e pneus fechando estradas e impedindo a passagem das pessoas. E faixas clamando pelo retorno da ditadura militar. Por coincidência ou acaso ou destino ou seja lá o nome que você dá a isso, eu estava lendo “Agosto” de Rubem Fonseca. O livro perpassa os principais acontecimentos antes do suicídio do presidente Getúlio Vargas. As relações obscuras entre empresas e políticos são narradas com maestria e riqueza de detalhes. As negociações escusas e motivações pessoais e egoísticas. Foi como ter um deja vu de algo que não vivi. O Brasil já viveu esse filme tantas vezes, e ele insiste em se repetir. Simplesmente porque não conseguimos aprender com nossos erros e olhar com clareza os fatos da nossa história. Em 1937, Getúlio fez uma Constituição sem povo e vivemos a ditadura do Estado Novo até 1945. O presidente decide acabar com sua própria vida em 1954 depois de voltar ao poder pelas urnas ungido pelo povo e às vésperas de uma nova eleição. As notícias pinçadas por Rubem Fonseca revelam as amarrações por trás do poder político historicamente capturado pelo poder econômico, os militares rondando a democracia como predadores. Esperando.
A história se repete quando não aprendemos com nossos erros. O Brasil não criou uma memória responsável sobre a ditadura militar, não reconheceu os seus torturadores, não julgou os algozes, não devolveu os corpos dos mortos às suas famílias, não chorou a perda dessas vidas, não se reconciliou com seu passado, não tratou sua ferida, não falou sobre ela. Silenciou.
A volta da democracia foi uma decisão do governo militar que determinou uma abertura lenta e gradual em 1982. O movimento das Diretas Já, emenda proposta pelo deputado Dante de Oliveira, começa a ganhar força em 1983. As pessoas vão às ruas. Em 1984 a emenda é rejeitada. O governo militar queria segurar o retorno do voto direto. As pessoas choram, se entristecem, mas as ruas já haviam sido tomadas. A população clamava pelo seu direito. “O poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Na eleição indireta Tancredo Neves é eleito em 1985. Em 1987 instala-se a Assembleia Nacional Constituinte.
Em 1988 a Constituição Federal é promulgada no dia 5 de outubro. Nessa sexta-feira, faltando dois dias para decidirmos quem será o próximo presidente, no ano de 2018, com a eleição mais pulverizada desde 1989 e polarizada pelo ódio, marcada pelos radicalismos e extremos, a Carta Magna completou 30 anos. Tive contato com esse período da nossa história, estudei, pesquisei para escrever matérias. Abracei a oportunidade de escutar pensadores e especialistas que discorrem com propriedade sobre todos esses episódios históricos. A nossa Constituição é considerada uma das mais avançadas do mundo, mesmo extensa e avaliada por alguns como tendo “gordura” demais, ela determina as garantias e os direitos fundamentais para todos os brasileiros. Ela declarou que viveríamos em um Estado Democrático de Direito.
A história nos revela bastante. Com a redemocratização, o Brasil passou a uma polarização política com dois opostos: direita e esquerda representados pelos dois grandes maiores partidos do país: PSDB e PT. Mas essa polarização sempre foi marcada pelo respeito às instituições, ao processo democrático, ao debate. Temos um salvador da pátria Fernando Collor que sofre o impeachment. Fernando Henrique Cardoso com seu Plano Real devolve à estabilidade ao país. Governa por dois mandatos. Depois de tentar tantas vezes, é eleito Luiz Inácio Lula da Silva. O PT foi eleito em uma campanha que prometia acabar com a corrupção. O marketing político entrava com peças publicitárias ousadas e criativas. Implementou políticas públicas sociais de extrema relevância. Diminuiu desigualdades e distâncias em um país continental. Com um reconhecimento histórico aos 300 anos de escravidão, instituiu as cotas para pessoas negras nas universidades públicas. Criou programas de financiamento estudantil. O Brasil vivia um novo momento. Progresso, obras, capacidade de consumo, pessoas saindo da pobreza, cidadãos tornando-se consumidores (com todos os prós e contras que isso significa). Estar no poder leva ao desgaste. O jogo duro constitucional, como explicou Steven Levistky – autor de Como morrem as democracias, mudou as regras com o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016. Tudo isso foi reflexo de outro acontecimento. Com escândalos da corrupção nunca vistos antes, a operação Lava Jato revelou os submundos da política e das maiores empresas do país. A revolta crescia. Em 2013 as pessoas tomaram as ruas com palavras difusas reivindicando tudo o que sentia que lhes era negado. A classe política ficou ainda mais em descrédito. O PT apontado como o grande mal do país.
O Brasil vive o sistema de presidencialismo de coalizão. Precisa do Congresso Nacional para aprovar mudanças. Deputados federais e senadores de todos os estados do país votam as matérias com a legitimidade que lhes cabe ao serem escolhidos pelo povo. São legisladores e fiscalizadores do Executivo. A Polícia Federal investiga, O Ministério Público denuncia e a Justiça ao ser provocada, julga. A Constituição previu um sistema de pesos e contra-freios para garantir que a democracia exista. Que um poder regule o outro. Mas, de novo, o poder econômico captura o poder político. Outros interesses entram em campo. Não podemos ter heróis de toga, como o super-juiz Sérgio Moro. Precisamos de juízes que apliquem a lei olhando as diferenças de cada caso. Não podemos restringir liberdades. Não podemos aceitar que o presidente do Supremo Tribunal Federal chame a ditadura militar de “movimento” de 1964. Não podemos normalizar tudo isso. A judicialização da política, a politização do judiciário. Não podemos censurar a imprensa, impedir as vozes de serem ouvidas.
Quando você entende como o sistema funciona fica claro que não existe um único responsável por tudo. Eu e você também somos responsáveis. Assim é uma democracia. Pesos e contra-freios. Quem faz as leis no país, só não pode mudar as cláusulas pétreas da Constituição. E é por isso que precisamos estar atentos, acompanhar as votações, entender o que cada um desses poderes representa, o que fazem, como funcionam. Participar. Ler. Mas aí voltamos para a realidade do país, a educação continua sendo um ponto fraco. E também falta interesse, afinal, pessoas com tanto acesso não possuem o costume de ler notícias todos os dias. Se eu fico um dia sem entrar em um site de notícias, sinto que estou fora do mundo, que a vida corre sem que eu saiba o que acontece. Muitos tem se informado apenas pelas redes sociais. Não saem de dentro de suas bolhas. Poucos mantém a tradição de abrir um jornal impresso enquanto tomam o café. E assim estão sujeitos a outros processos que avançaram com uma velocidade assustadora no mundo.
Com o uso intenso das redes sociais, com seus aplicativos que prendem nossa atenção por mais tempo que o necessário, e por muitas pessoas só conseguirem ter acesso ao WhatsApp em seus planos telefônicos, surge o efeito do fenômeno das fake news. As notícias falsas que circulam o mundo e impactam a realidade. Estamos na Era da pós-verdade. Só o que vale é a minha opinião e crenças pessoais. Fatos, história, ciência, informações, notícias? Nada disso tem mais valor. A Internet permite que qualquer pessoa possa ter um site e assim criar a sua própria verdade, a sua própria versão da realidade.
Não podemos nos deixar levar pelo ódio. Pelo desprezo às pessoas, às múltiplas e infinitas realidades que são tão distintas, a cada história que é única e individual, com um olhar empático, cultivando amor e não racismo, preconceito, misoginia, machismo, homofobia, raiva, ressentimento. Muitas pessoas morreram. Deram a vida para que pudéssemos depositar nossas vontades intransferíveis para contribuir com a tarefa de construir um país, que supere todas essas dificuldades, que trate com respeito as suas feridas e aprenda com a sua própria história. Ela se repete, e volta para nos ensinar nossos erros. Não podemos ter um presidente que exalte torturadores, que menospreze a democracia e defenda a ditadura militar, e tudo isso é muito sério. Não podemos ter um presidente que concedeu entrevistas defendendo o fechamento do Congresso Nacional. Ou um vice-presidente general que declare que o presidente pode dar um autogolpe em situação de anarquia ou convocar um conselho de notáveis para fazer uma nova Constituição. Não podemos diminuir a gravidade de todo esse discurso, que está sendo dito como “liberdade de expressão” na imprensa que ele também menospreza, mas que nos garante nosso direito à informação, o mesmo que nos foi roubado na ditadura. Esse discurso é contra a vida. E contra a vida de todas essas pessoas que morreram lutando contra a ditadura.
Precisamos de afeto. Não iremos retroceder. Chegamos em um ponto da história da humanidade que podemos enxergar o passado para fazer um futuro no presente. Porque enquanto tudo isso acontece e assistimos incrédulos o Brasil repetir os erros de outros países, que afetados por essa onda de informações falsas foram levados à decisões questionáveis, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit. Não podemos permitir que ataquem nossas liberdades. Não podemos permitir que questionem a democracia, que tem falhas, mas ainda é o melhor sistema que podemos ter. Precisamos aperfeiçoá-la, ampliar as participações. Precisamos encontrar a nossa voz. Não podemos nos silenciar. Não agora. Vivi e aprendi tudo isso em 2018 e ainda fui para a rua com milhares de outras pessoas, de todas as identidades, cores, credos, crenças, classes sociais, idosos e idosas, crianças, mulheres, homens, que entoaram um único hino: Ele não.
Tudo o que ele representa não. É o obscurantismo, o retorno ao passado, é voltar às sombras. Li um texto que dizia que esse autoritarismo/conservadorismo que estamos vivendo em todo o mundo e vendo nessas pessoas é uma reação de apego ao passado devido aos avanços que conquistamos enquanto sociedade. Avanços esses que são quebras de paradigmas, mudanças que não irão mais retroceder. Mas que essa reação é como a luz de uma estrela que há muito se apagou. É uma última tentativa de retornar ao que éramos. Essa luz pode cegar alguns mas nós ainda podemos enxergar na escuridão. E se não podem ver, então que nossas vozes não se silenciem e encontrem ouvidos que ouçam.