Penso que minha preferência pelo romance se dá pelo fato de querer conviver mais de perto e por mais tempo com as personagens. No gênero conto isso acontece de modo passageiro, e não falo aqui de profundidade, ou coisas do tipo. Gosto de passar horas com o mesmo cenário, penetrando vagarosamente no entorno de figuras criadas e reproduzidas no papel e que trazem esse poder de encantamento a quem as observa.
“Teta Racional”, de Giovana Madalosso, é um livro de contos. São dez narrativas distribuídas por cento e vinte e cinco páginas. Acho difícil que contos e poemas, quando agrupados em livro, tenham todos o mesmo grau de profundidade. E não vai aqui nenhuma crítica específica, apenas uma observação para defender o meu gênero preferido; pela unidade estética e temática que o romance (normalmente) apresenta.
XX + XY, A paraguaia, A teta racional, Sentimento n. 01403 e Suíte das Sobras são os que mais me chamaram a atenção. E digo agora o porquê. O primeiro, com as informações genéticas no próprio título é uma interessante história da mulher que engravida de um desconhecido (o que demonstra a irracionalidade da teta – tomada aqui como fragmento metonímico da mulher). Gostei de como a ideia dialoga com o conto que dá título ao livro.
O rapaz, conhecido em uma balada, entra para a história dela por um desses momento mágicos em que os hormônios em festa cobram da portadora de tal corpo uma atitude. A convivência com os dramas de mãe solteira e a inexperiência com a situação fazem do rapaz, dono de uma pasta de couro, um apêndice. Lutar com as dificuldades da amamentação, a troca de fraldas e o empedramento do leite são retratados de maneira crua.
A racionalidade toda parece sumir, em se tratando de sexo. E em IDIOTA OUTRA VEZ, a comparação com rituais de acasalamento entre cães a narradora nos surpreende novamente. Ela narra o histórico de cachorros em cidades portuárias, como vão e vem das embarcações e vivenciam novas moradas. “Olhei para um casalzinho que estava trepando na soleira de uma loja, ele com as patas bem cravadas nas costas dela. Pensei que talvez ele fosse espanhol e ela chinesa, que talvez não estivessem entendendo nada do que o outro estava latindo, e achei romântico” (idem, p. 47).
Mas o conto A PARAGUAIA foi o que mais me atraiu. Sequer tenho condições de transcrever uma ou outra citação. Acho todo ele um conjunto harmônico que faz de todas as categorias narrativas na escrita um compêndio de cultura literária. Penso, e isso eu posso, que daria um belo romance. A TETA RACIONAL traz um embate forte no ambiente corporativo, a relação de produtividade da lactante em seu ambiente de trabalho e as intolerâncias de seu chefe. A PARAGUAIA vivencia o oposto disso.
Em SENTIMENTO N. 01403 há uma retomada do que a primeira narrativa traz como elemento de fundo. “O filho de meia-idade carregando uma pasta de couro” (idem, p. 89). Isso me intriga. A racionalidade toda traída em pequenas porções, como em FIM. “Ele – que tinha a inicial dela tatuada no pulso porque ali dava para sentir o coração – seguiu seu caminho até a pista de dança, onde alguém esperava por ele” (idem, p. 92).
Entre o racional e o sentimental para haver um conjunto de arestas que, em SUÍTE DAS SOBRAS busca ressignificação. “Por que será que até amar tem que ser tão difícil” (idem, p. 94). Esta citação encerra uma página depois de amplas reflexões acerca do amor entre mãe e filha, por exemplo. E me lembro de que “Cada página é um tapa” (FREIRE, 2018, p. 116).
A existência de parêntesis sem nada dentro indica espaços de convivência que não são explicitados, e que o leitor terá que percorrer de maneira retroflexa a fim de habitar o espaço em branco. A nuvem carregada de significados por trás do céu de brigadeiro. ( )
O passeio pela big sur é surpreendente. Ao se preparar para a ida a uma festa, enquanto tentava fazer escova no cabelo e queimar a fase que afeta a todo o hotel, ela surpreende o leitor trazendo em síntese o elemento que a toma por completo: “O cabelo é o pau da mulher. Se não funciona, nada funciona” (idem, p. 119). Esse conto se encerra trazendo a imagem terna de uma relação desgastada em que o amor reconstruído aponta para novas e interessantes revelações:
Quando já estávamos na periferia de San Francisco, minha mãe deu uma freada brusca e parou na frente da escadaria de um colégio. Vi um menino sentado na escadaria, com a cabeça baixa, quase no meio das pernas, e os pés bem virados para dentro, como se quisesse se dobrar até sumir. Minha mãe apontou para o menino e disse: pega a tua câmera, essa foto vai ficar boa (idem, p. 125).
A coreógrafa percebe na mãe alguém que passou a entender como a filha se relacionava com o mundo exterior, o que lhe dava prazer, e começa a entender a importância das escolhas de cada um e a felicidade resultante disso.
Depois de “Tudo pode ser roubado”, a leitura deste livro me permite conhecer um pouco mais daquilo que Carola Saavedra aponta em orelha: “Giovana Madalosso apresenta uma escrita permeada de talento, inteligência e coragem. Uma escrita que, não tenho a menor ressalva em dizer, aponta para o surgimento de uma grande autora. Quem ler verá”.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Marcelino. Bagageiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2018.