Não se separa o sujeito de seu predicado por vírgulas. Esse é um dos pressupostos básicos da atitude gramatical de caráter normativo. Mas quando há o sujeito e em relação direta um objeto, se não houver concordância entre os corpos, faz-se necessária mais do que uma pequena pausa: um ponto final. Explico: Vejamos o seguinte período simples, oração absoluta. “Eu me possuo”. Análise morfológica – Eu (pronome pessoal do caso reto); me (pronome pessoal do caso oblíquo); possuo (verbo transitivo direto).

Mas se partimos para uma análise sintática, ou seja, a relação que existe entre os termos da oração, vemos que sujeito é aquele que pratica ou sofre ação, perfeito. O pronome pessoal do caso reto pratica a ação de possuir a si mesmo, ok? Me é pronome pessoal também, mas do caso oblíquo, ou seja, aquele sobre o qual é praticada a ação. No caso presente, a de sofrer a posse. Possuo – aqui estamos diante do verbo, o veículo que justifica a ação. Se transitivo direto, o verbo caracteriza o ato de alguém dominar, deter a posse, o que é substantivo.

Em seu romance Eu me possuo, Stella Florence dá voz àquele embargo represado na garganta de quem já foi violentada. Uma, na pele de milhares, quiçá, milhões. A quase dentista que busca se livrar do que a cor branca representou em sua vida, ao sair em busca de cores para sua paleta. A que recorre ao amor entre androides para esquecer o que existe entre humanos. Para fugir do projeto de mãe, representado pela sua, em busca de um projeto de ser mulher, aquilo que vem antes da maternidade.

Passar a vida a limpo, nem que fosse ao custo do detergente da cozinha de um bar, aquele cujo uso contínuo destrói as digitais. Mas que identidade é essa sem uma identificação com os seus usos? O vento que desnuda Karina no início do romance é o que sopra a sua liberdade no fim. “A sombra faz parte da luz” (Florence, 2016, p. 62). Karina e Gustavo J. – agora em papeis invertidos. Ela sendo sujeito (ativo) e ele, objeto dos danos causados mais que a ela, à sua própria consciência. A libertação às vezes vem da própria consciência e alívio de possíveis e improváveis culpas.

Ela, um conjunto de conjunções coordenadas de forma polissindética “Se pudesse, Karina não dormiria mais, engoliria dia e noite e madrugada e aurora e entardecer e emendaria uma coisa na outra sem interrupção” (p. 83); ele, uma sequência de conjunções explicativas:

Ele a cumprimentou animado, convidou-a para se sentar com ele, disse que estava curioso quanto ao que ela havia feito esses anos todos, contou que continuava trabalhando na área tributária, que gostaria de ir para outro escritório, mas a situação econômica não estava propícia a mudanças, que seu pai tinha sido morto num assalto, que ele ficou um ano e meio muito mal, que acabou fazendo terapia e tomando remédios, que agora ele estava bem, que sua mãe se mudou para uma chácara em Itapira, que ele tinha comprado um cachorro, que o cachorro se chamava Vettel, que ele ainda  era fã de Fórmula 1, que Vettel ficava muito sozinho e isso o enchia de pena, que ele estava pensando em levá-lo para a chácara da mãe onde havia outros dois cãezinhos para lhe fazerem companhia…(p. 115-6).

Stella Florence por Krys Kcnack

Karina, quando nos braços do professor de história apaixonado por cinema e literatura, mergulha no audiovisual para sair da branquitude de sua vida de poucas cores. Mesmo só, no refúgio do aconchego da casa de sua avó, onde “o silêncio podia existir” (p. 178) gostava de assistir ao caçador de androides. Envolver-se emocionalmente com Rutger Hauer a deixava mais tranquila. A paranoia crescia, fio por fio de cabelo encontrado. As descrições do inventário de modalidades de estupro contidas nas cartas de Karina ao estuprador são estarrecedoras.

Precisamos falar mais de estupro sim; em casa, nas escolas, nos ambientes corporativos, nas rodas de botequim. Os números são crescentes e têm associação direta com o crescimento de feminicídios, com a transfobia, misoginia e demais elementos patológicos do século XXI. Não sei se serve de consolo, mas Stella Florence, ao escrever esse livro já pode dizer (sei que não o fará!) que fez a sua parte. Como mulher, como mãe, escritora, pensadora de um mundo melhor para todos nós.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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