A realidade anda tão surrealista quanto uma película de Jodorowsky. E assim o sendo, captura a nossa capacidade de fantasiar. O exercício de imaginação é aplicado para tentar ao menos compreender como tudo isso que está acontecendo é possível. A sensação que tenho é que é difícil criar outros mundos possíveis quando esse devora a nossa sanidade a cada passo. Acompanhando o desgoverno atual e suas estratégias autofágicas, é impossível não pensar qual o real propósito de tudo isso. Um dos motivos ao qual quero dedicar essas linhas é a disputa pelo controle/poder das riquezas naturais. A inércia é proposital, a confusão tem razão para existir. As idas e vindas. O jogo explícito para burlar as regras, esgarçar os limites, rasgar ainda mais o tecido social. Não decidir também é uma decisão.

Foto: Adriano Machado / Reuters

Várias frentes são atacadas simultaneamente para dispersar atenção através de notícias e mais notícias sobre decisões absurdas. Um vai e vem com o intuito de desviar o foco, enquanto aceleram o desmonte das políticas públicas. Atacam as ONGs que realizam trabalho imprescindível na defesa do meio ambiente e de comunidades tradicionais. Colocam em xeque e ao mesmo tempo que exploram a narrativa vazia e midiática – mais surrealista que os surrealistas – atuam para esvaziar as políticas ambientais bem-sucedidas e o seu papel vital no futuro do mundo. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles coloca em risco o Fundo Amazônia, que recebe aportes da Alemanha e Noruega para proteção da floresta, ao tentar alterar as regras. Enquanto ocupa os holofotes, do outro lado da ponte, o governo aprovou até 15 de maio de 2019, 169 novos agrotóxicos. O maior ritmo já registrado.

O Congresso impõe derrota ao governo e derruba as alterações propostas para o desenho ministerial. Devolvem a Fundação Nacional do Índio (Funai) ao Ministério da Justiça – mesmo isso sendo contra a vontade do super-poderoso ex-juiz Moro – juntamente com a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas… aquelas mesmas que o antipresidente Bolsonaro afirmou em alto e bom som que não aprovaria nem um centímetro. Mas, como todo enredo pede, em uma reviravolta para cumprir a sua promessa e honrar o compromisso espúrio feito com os ruralistas, eis que o governo edita nova Medida Provisória e entrega a Funai ao Ministério da Agricultura. O debate agora é sobre a legalidade da MP. Pela lei, o governo não pode editar medida provisória que versa sobre o mesmo assunto na mesma legislatura. Contudo, a MP dos ministérios foi editada em janeiro. A atual legislatura do Congresso Nacional tomou posse em fevereiro.

A proteção às terras indígenas é fundamental para a defesa do meio ambiente. É lá onde há mais proteção aos animais, aos rios, florestas, mesmo que queiram criar uma narrativa fantasiosa de que são eles os responsáveis pela exploração ilegal aos recursos naturais em suas reservas. Existe uma guerra não silenciosa no campo e é preciso olhar atentamente para o que acontece dentro do nosso país, o mais letal para ativistas e defensores da terra e do meio ambiente.

Foto: Ibama

O avanço predatório do agronegócio resulta – além da disputa pelas terras através do Congresso e da grilagem – no aumento do desmatamento. De outubro de 2018 a abril de 2019, o crescimento foi de 20% só na Amazônia. E no cenário nacional, Mato Grosso foi o segundo estado que mais desmatou no período.

Felipe Werneck/Ibama

Essa semana me deparei com o MapBiomas Alerta, um sistema de validação e refinamento de alertas de desmatamento, degradação e regeneração de vegetação nativa com imagens de alta resolução. Segundo o próprio site da ferramenta, a versão atual é dedicada exclusivamente ao tema de desmatamento em todos os biomas brasileiros e se expandirá para os demais temas ao longo dos próximos dois anos. Passar as imagens do antes e depois dos mapas é uma experiência assustadora. A velocidade com que avançam sobre as florestas é sinal de que falhamos miseravelmente. De outubro a março, houve perda de 89.741 hectares, a partir de 4.577 alertas emitidos pelo Mapbiomas.

Antes e depois do alerta de desmatamento do MapBiomas

As repercussões do avanço predatório sobre o meio ambiente são sentidas em todo o mundo, e o aquecimento global representa preocupação para 37% dos entrevistados, sendo considerado tema prioritário mundial, conforme pesquisa Ipsos. Como diz a ativista climática de 16 anos e símbolo da luta contra a crise climática, a sueca Greta Thunberg “não é tempo para esperança, é tempo para ação”. É preciso agir com urgência. Precisamos romper a inércia. Não haverá um planeta para abrigar o futuro caso não paremos com o modo de consumo irracional, com a exploração predatória, com a irresponsabilidade para com as gerações futuras e com as outras espécies que dividimos esta, que é a nossa única morada possível. São tantas as mudanças que é necessário que haja um despertar coletivo mundial. Vejo imagens como a dos ursos polares invadindo cidades russas, a quilômetros e quilômetros de distância do habitat natural, revirando lixões em busca de comida e penso como é possível não pararmos absolutamente tudo para lidar com este problema?

O movimento dos jovens em greve, impulsionado por Greta – que começou a faltar aulas às sextas-feiras para protestar em frente ao Parlamento – chamado #FridaysForFuture se espalhou pelo mundo alcançando 166 países.

Esse levante é contraponto para o modus operandis dos governos autoritários que emergem ao redor do globo. Falsear a realidade e os fatos, refutar dados e a ciência, distorcer a história. Esse surrealismo, a que me refiro no início do texto, provocado e representado pelas ações e inações do desgoverno bolsonarista, é explicitado no livro de Noam Chomsky – Mídia: propaganda política e manipulação. A primeira frase do capítulo Representação como realidade demonstra esse exemplo: “É necessário, também, falsificar completamente a história.”.

Em outro momento afirma: “A verdade dos fatos encontra-se enterrada debaixo de montanhas e montanhas de mentiras.”. Outros trechos parecem analisar a situação atual que vivemos: “Tudo começa sempre com uma ofensiva ideológica que cria um monstro imaginário, seguida pelas campanhas para destruí-lo.”.

Com a perspectiva de que essas táticas de manipulação tratam as pessoas como “rebanho desorientado”, Chomsky prossegue destrinchando o pensamento: “O rebanho desorientado representa um problema. Temos de impedir que saia por aí urrando e pisoteando tudo. Temos de distrai-lo. Ele deve assistir aos jogos de futebol americano, às séries cômicas ou aos filmes violentos. De vez em quando você o convoca a entoar slogans sem sentido como “Apoiem nossas tropas”. Você tem de mantê-lo bem assustado, porque, a menos que esteja suficientemente assustado e amedrontado com todo tipo de demônio interno, externo ou sabe-se lá de onde que virá destruí-lo, ele pode começar a pensar, o que é muito perigoso, porque ele não é preparado para pensar. Portanto, é importante destruí-lo e marginalizá-lo.”. – Alguma semelhança?

Enquanto eles disparam suas armas para alcançar seus objetivos inconfessáveis, manipulando as narrativas ao sabor dos seus próprios interesses, travando guerras ideológicas e por costumes conservadores, existem pessoas que resistem para além das bolhas virtuais. E mesmo que o cenário pareça desolador, uma afirmação de Chomsky chama a minha atenção pela peculiar esperança embutida em suas linhas pesadas e me faz pensar nos jovens que tomam às ruas cobrando ação dos governantes irresponsáveis e inertes: “Em primeiro lugar, a democracia não estava funcionando bem. Na verdade, o rebanho desorientado estava alcançando vitórias legislativas, e não era assim que as coisas deveriam ser. O outro problema é que as pessoas estavam tendo a possibilidade de se organizar. É preciso manter as pessoas atomizadas, segregadas e isoladas. Elas não podem se organizar, porque assim elas podem deixar de ser apenas espectadoras da ação. Na verdade, se um grande número de pessoas com recursos limitados conseguisse se juntar para ingressar na arena política, elas poderiam vir a se tornar participantes. E isso, de fato, é ameaçador.”.

Para encerrar, deixo a reflexão necessária da ativista Greta Thunberg, que resume a real situação do planeta e do futuro da humanidade: “E sim, nós precisamos de esperança, claro que sim. Mas uma coisa que precisamos mais do que esperança é de ação. Uma vez que começarmos a agir, a esperança estará em todos os lugares. Então ao invés de procurar por esperança, procure por ação. E então, e só então, a esperança virá”.

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