Não se trata de minhas memórias, das suas, de ninguém. Aprendi que gostar de livros implica em respeitar toda a cadeia produtiva na qual se insere este bem maior. Entre aquele que lê e o que escreve existem os que vendem, os que distribuem, os que editam, diagramam, revisam. Recentemente há também os que preparam originais, dentre outras figuras importantes do processo. É um coletivo, espécie de “nós” nessa complexa trama.
Há livros que, ao saber de sua existência e luta para vir à tona, são esperados com mais intensidade que outros. Um deles é “Memória de Ninguém”, de Helena Machado. Tive o privilégio de saber de sua existência e de seu amadrinhamento precoce por Carola Saavedra a quem considero um dos grandes nomes da narrativa contemporânea (não somente no Brasil). Recebi de Helena um exemplar da revista Granta no qual se publicou um fragmento de seu livro; que se anuncia há um tempo e finalmente eis que surge ao fim do túnel pelas mãos de Simone Paulino.
Em vídeo postado nas redes sociais pude experimentar a felicidade de Helena e seus familiares quando do anúncio de que sairá pela editora “Nós” tão esperado filho. Foi o que me estimulou a tirar da fila o título de Simone que comprei junto ao Diário I, de Virgínia Woolf lançado no Brasil, de que é editora. “Dormíamos [nós] todos na mesma cama, e o que era ruim ficava bom: a mãe sempre ao alcance da mão na hora do pesadelo, o carinho da coberta pouca, esticada aqui e acolá para cobrir os pés gelados”. (p. 6).
De acordo com a ficha catalográfica, o livro de Simone pode ser classificado como Literatura brasileira; ficção; conto; ou memória. Um pouco de cada coisa. Brasileira por razões óbvias, ficção por não se prender à realidade circundante, embora seja produto de uma vivência, de onde partem inquietações. Conto, talvez pelo compartilhamento de instantâneos (que dialogam em um crescendo). Memória, sim; gosto disso. O revisitar um tempo passado “Ninguém ia querer de fora daquele banquete, muito menos nós”. (p. 21).
As narrativas (o livro é dividido em dois blocos) seguem o tênue fio da rememoração que traz à lume certo fio condutor que nos apresenta (a nós, leitores) o lado de dentro de quem escreve. E um calor humano se desprende ao virar das páginas quando sobrepõe mãe, filha, neto, a ausência de pai e a irmandade corrompida como em qualquer família que em tons de sépia se penduram pelos cômodos da casa. “A mãe não se importou com o frio. Aliás, por alguma estranha razão, quase nunca tinha frio nem fome. Sempre deixava as cobertas e a comida para nós”. (p. 22-23).
O subúrbio paulistano se desenha pelas vizinhanças do bairro do Brás. “Quem, por descuido perdesse o trem, ou melhor, a hora, podia contar ainda com o apito da fábrica, uma indústria instalada na divisa com o bairro vizinho, que chamávamos simplesmente de Fábrica de Papel”. (p. 32). Há poeticidade nas descrições da obra. A desnecessidade de relógios reforça o cotidiano mediado pelo apito do trem. Mas o da fábrica parece ter ficado forte, até pela natureza do empreendimento de quem ousara montar uma editora.
A personagem fala de seu primeiro trabalho. o ateliê de costura de sapatos. O artesanato em couro de dona Neide, rememorado pela narrativa: “Um gosto de café com bolinhos (…) que eu comia com satisfação, a não ser quando um sentimento de culpa me cutucava a boca do estômago, lembrando-me da fome dos meus irmãos”. [nós]. (p. 35). Há que se condoer, caro leitor, com a leitura de certas imagens, sobretudo na relação de quem escreve com a própria mãe, a quem ajudava com poucos caraminguás “ainda que essa troca de lugares tivesse sido selada somente entre nós, sem o conhecimento de mais ninguém”. (p. 40).
Um pai assassinado, um irmão morto, uma mãe que virou sua filha e embalava o neto com hálito impregnado de amor e nicotina. “Alguém tinha que ser forte entre nós, (…) com o passar do tempo, a vida ficou mais doce para nós” (p. 42). O retrato da mãe sofrida, que colocou o instinto materno acima de qualquer outro sentimento e que, talvez por isso mesmo estivesse “presa às amarguras do passado. Amarguras que passaram para nós, mas ainda brotam verdes nela. Nós, que montamos um teatro inútil todos os finais de semana em sua casa tumultuada e vazia”. (p. 44).
E a cada final de ano, retratado na cultura da (periferida) cidade sobra encanto em cada aspecto comunitário sugerido. “À medida que cantávamos [nós] a melodia de despedida ao ano que findava, começava a se formar, de pouco, um doído nó na minha garganta que, na segunda estrofe da música, já havia se convertido em lágrimas”. (p. 53). E assim me vejo em algumas das cenas descritas ou narradas por Paulino.
Observo com cuidado alguns detalhes que interligam o material humano narrado. Quando leio sobre pés, lembro-me de dona Neide e de seu primeiro emprego: “Os pés protegidos por botas e meias”, e ela narra o movimento da viagem a Paris. Os cobertores das Casas Pernambucanas (loja que marca a infância de muita gente de todo o Brasil).
E as imagens se sucedem. Lembro-me que em meados dos anos 1970, quando devia ter algo em torno de 14 anos de idade (sou de 1962) encontrei, andando pelas ruas de minha cidade um compacto simples e o guardei como riqueza. Uma das faixas, não me recordo se do lado A ou B intitulava-se rock and roll lullaby, música que embalou minha pré-adolescência.
REFERÊNCIA
relato critico poetico